O pai de Eloah carregou sozinho o caixão da menina, de 5 anos, da capela até a sepultura. "Falei para minha filha que ficaria com ela até o final. Eu consegui. Estou com você para sempre, filha." Uma dor inimaginável, a do ajudante de pedreiro Gilgrês da Silva. Impossível não chorar, também, ante o desespero da irmãzinha de Eloah, 8, na frente do túmulo. Tristeza de abalar a nossa alma.
Gilgrês perdeu a filha para a violência, para a negligência do Estado, para a falta de respeito pelos direitos humanos, para o pouco caso com as pessoas mais humildes. Tragédias como essa mostram que a vida do pobre tem menos ou nenhum valor na perspectiva de quem deveria garantir segurança.
Eloah brincava dentro de casa, no Morro do Dendê, na Ilha do Governador (RJ), quando foi atingida no peito por uma "bala perdida". Segundo moradores do local, o disparo partiu de policiais que tentavam reprimir um protesto na comunidade por causa da morte de Wendell Eduardo, 17, em uma abordagem, poucas horas antes. Segundo PMs que participaram da ação, o rapaz estava armado, e houve troca de tiros.
As duas mortes ocorreram cinco dias após um outro adolescente perder a vida também em uma ronda da polícia. Thiago Flausino, 13, estava na garupa de uma moto quando foi baleado, na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio.
Os casos não são isolados. Levantamento do Instituto Fogo Cruzado mostra que, nos últimos sete anos — de 5 de julho de 2016 a 8 de julho de 2023 —, 601 crianças e adolescentes foram atingidos por tiros na região metropolitana do Rio: 267 morreram e 334 ficaram feridos. Ainda conforme a entidade, adolescentes representam 78% das vítimas: 231 mortos e 237 feridos. Entre as crianças, das 133 baleadas, 36 morreram e 97 se feriram.
As ações e operações policiais foram o principal motivo para vitimar meninos e meninas nesse período, de acordo com o instituto. Entre as 601 vítimas, 286 foram atingidas nessas circunstâncias, resultando na morte de 112 e deixando outras 174 feridas.
Como é que barbáries assim se repetem sem que nada seja feito para contê-las? Não há nenhuma política de segurança pública efetiva, eficiente, para dar um basta nessa calamidade. O combate ao crime não pode ser justificativa para dizimar vidas inocentes. "A história do Rio de Janeiro é marcada por crianças e adolescentes mortos e feridos", diz Cecília Olliveira, diretora-executiva do Fogo Cruzado. Eloah, Thiago, Ágatha Félix, Maria Eduarda, João Pedro, Kauã, Alice, Emilly, Rebecca e tantos outros são a prova disso. Até quando?