Justiça

Artigo: A equivocada lógica que confunde o advogado com o cliente

O contrário do que se pensa, há punições em excesso e ainda se aplica a tortura como método de "confissão" nos porões das delegacias e penitenciárias do país

A advocacia conseguiu, mesmo na ditadura, deflagrada no Brasil, em 1964, fazer com que a Justiça Militar cumprisse o papel de não permitir que fosse instalada no país uma Justiça de exceção. O Estado era de exceção, mas a Justiça não. Hoje, vivemos em um Estado Democrático de Direito, temos uma das Cartas Constitucionais mais belas do mundo, eleições livres e diretas e uma democracia em pemantente processo de construção e fortalecimento.

Se por um lado amadurecemos a democracia, fortalecemos suas instituições e aumentamos a participação da sociedade nos debates políticos, por outro somos permanentemente revisitados pelos fantasmas de outrora e estamos longe de nos livrar dos ranços ditatoriais. Não são raras as demonstrações de autoritarismo por parte de representantes dos Três Poderes da República. Ao contrário do que se pensa, há punições em excesso e ainda se aplica a tortura como método de “confissão” nos porões das delegacias e penitenciárias do país.

No âmbito do Poder Judiciário, são os advogados as maiores vítimas desses resquícios ditatoriais, comumente apresentados sob um falso manto democrático. Durante a Operação Lava-Jato, ocorreram invasões aos escritórios de advocacia: computadores e arquivos de clientes foram devastados, e a ação fundamentada em mandados de busca e apreensão genéricos que afrontam a legalidade.

A relevância do nosso sigilo profissional é tamanha que, mesmo quando presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, as informações de seus clientes devem ser preservadas. Segundo o art. 7º, inciso XX, 6º, do Estatuto da Advocacia, em qualquer hipótese, é “vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do Advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes”. O direito de defesa é sagrado e não pode ser desvirtuado por uma equivocada lógica que confunde o advogado com o cliente

Certa vez, ao despachar um habeas corpus com ministro de corte superior, ele me perguntou qual era o crime em questão. Respondi: “Estelionato”, ao que ele retrucou: “Não gosto de estelionato”, e eu de pronto perguntei: “E de qual crime o senhor gosta? De crime contra os costumes, estupro, sedução? Qual o crime que lhe agrada? Eu também não gosto de estelionato nem de nenhum crime”. Por óbvio, não estava ali para defender o estelionato, mas o acusado de estelionato, numa perspectiva de que era inocente e possuía direitos que deveriam ser reconhecidos e respeitados.

Há alguns crimes, considerados graves, que carregam em si uma dose de preconceito. O fato de o réu ter sido denunciado já faz dele um condenado e, não raras vezes, esse estigma é passado ao seu defensor, que sofre o mesmo olhar de repulsa por parte do MP, do juiz e, em casos de repercussão midiática, de parte da sociedade.

Advogado não pode ser responsabilizado criminalmente pelo delito de lavagem de dinheiro do seu cliente desde que receba seus honorários formal e regularmente, sem qualquer ato de ocultação ou dissimulação destes. Adotar entendimento diverso, em verdade, impossibilitaria que o acusado freqüentasse um restaurante ou uma academia de ginástica, fosse assistido por seu médico ou dentista, fizesse compra em um supermercado. Todos seriam receptores em potencial, o que configuraria um desmesurado absurdo.

Como em qualquer profissão também na advocacia há os que se acumpliciam ao cliente e merecem ser punidos. Por isso necessitamos de Tribunais de Ética e Disciplina que sejam ágeis e funcionem, punindo os que envergonham nossa classe. Esses, contudo, não representam a maioria dos 1,3 milhão de advogados brasileiros. Mas não é de pessimismo que se forja a advocacia. Se soubermos reagir quando nada mais nos parecia favorável, é possível reagir em tempos democráticos, reforçando lemas tão fortemente defendidos pelo Estatuto da Advocacia. Somos indispensáveis à administração da Justiça! É hora de união de nossa consciência profissional, mais do que nunca saber o papel que representamos para a democracia.

TÉCIO LINS E SILVA, advogado, jurista, professor, ex-secretário de Estado de Justiça do Rio de Janeiro. Presidiu o Conselho Federal de Entorpecentes (Confen). Ex-procurador-geral de Defensoria Pública do Estado do RJ; ex-membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

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