Esse é um debate que vem ganhando, cada vez mais, tempo e espaço na mídia em nossa sociedade. É pela recorrência de episódios envolvendo questionamentos aos humoristas. Alguns já sofreram censura pública e outros até condenações na Justiça. Será absurdo levar tão a sério e criminalizar a piada, algo que, supostamente, nos serviria tão somente para ser passatempo, para rir, para aliviar tensões? Ou será que a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, o crime que é punido pela Lei 7.716/89 pode ser “perdoado”, se dito em um palco ou em uma obra audiovisual por alguém com licença poética por ser um artista? Qual é, afinal, o limite para uma piada?
Há quem defenda que “liberdade de expressão” deve prevalecer. É um direito constitucional. Garantia de que os cidadãos podem fazer suas manifestações com a certeza de que emitir opiniões ou brincar com alguma ideia não merece reprimenda na forma de uma simples censura ou punição legal. Estariam cobertos por esse bem jurídico intelectuais, artistas, cientistas, profissionais da comunicação, os humoristas e todos os cidadãos. Ocorre que o direito à “liberdade de expressão” deve ser sopesado com outros constitucionalmente garantidos. Por exemplo, se a “liberdade de expressão” ensejar preconceito ou der lugar a uma formulação racista será, sim, um crime contra pessoas ou a coletividade.
Não importa o cenário de um crime! Onde acontecer, será crime. Por que os que têm os mesmos direitos civis de um humorista deveriam abrir mão de seu direito de não serem objetos de discriminação ou racismo, só porque as palavras ofensivas foram ditas em cima de um palco ou no contexto literário ou audiovisual?
O humor que propicia rir do outro cabe na sociedade que pretendemos para a criação e a formação de crianças e adolescentes, as futuras gerações? Está em consonância com a fundação do Estado Democrático de Direito no Brasil? É importante que humoristas e plateia pensem sobre isso. Também que o Estado brasileiro invista em educação e em campanhas sobre convivência pacífica, coexistência.
Sempre será possível não dar audiência, acionar o controle remoto, não pagar o ingresso de um show. Condenar o crime pelo abandono material, pelo não sustentar essa prática. Contudo, é razoável pedir aos ofendidos que se contenham quanto ao direito de exigir desculpas, reparações ou indenizações?
Há os que digam que, no passado, rimos de piadas de gostos bem mais duvidosos e sobrevivemos. E cabe perguntar: por isso, seguiremos fazendo mais do mesmo? Tem quem diga que se recusa a discutir uma piada. Nesse caso, devemos nos questionar: se uma piada tiver que ser explicada como “funciona”, seja como entretenimento, ou para ser reproduzida, vale a pena que seja feita?
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Mais argumentos podem ocorrer aos que sustentam que péssimas inspirações devem prosseguir impunemente: a pessoa não imaginou que a sua piada daria em uma polêmica sem fim; a intenção não foi ferir ofender, discriminar, injuriar outros. Sendo isso, por que não validar o redimir-se? Qual é o problema em reconhecer o erro e passar uma mensagem positiva de que entende a dor dos ofendidos?
A Lei 7.716/89 se aplica a todos nós no território brasileiro, sem exceção. Lembrando que, em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a homofobia é um crime imprescritível e inafiançável, de acordo com essa mesma lei. Fazer discriminação na forma de “piada” pode ferir os direitos da população LGBTQIAP+ e é muito comum que isso seja desprezado.
Por que tanta severidade, quando temos sociedades mais tolerantes com ideias e a propagação delas, como a norte-americana? É porque no Brasil temos nosso sistema jurídico derivado da Constituição Federal e, a partir daí, tivemos leis aprovadas — e está vigente essa chamada lei do racismo. O texto garante o direito de ir à Justiça aos que não se sentirem à vontade com a suposta “liberdade de expressão” levada ao ponto de ser questionada como crime.
Fazer piada requer inteligência, agudeza de espírito, carisma, talento, mas não é aceitável, hoje em dia, o uso de preconceitos. Não é por “mimimi” da plateia, de pessoas negras, de judeus, de LGBTQIAP+ e outros. É por fatores históricos que respaldaram a apresentação do projeto de lei, a aprovação pelo Congresso Nacional e o texto sancionado para coibir práticas racistas ou discriminatórias. São amplos os registros históricos e dados sobre violência que motivaram essa lei e a tornam, ainda, muito necessária. Precisa que seja aplicada nos casos em que couber.