JÚNIA GUIMARÃES CIOFFI
Este é um momento promissor e único para os hemoderivados e a hemoterapia brasileira. O Ministério da Saúde tem ratificado a disposição em fortalecer a hemorrede e a indústria de hemoderivados, agora classificada como área estratégica da Defesa Nacional, conforme atesta selo concedido pelo Ministério da Defesa. A notícia mais recente revela que o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) vem para contribuir com o fortalecimento do trabalho e o papel da Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia), que está na reta final da construção do seu parque fabril. Ainda, estamos às vésperas de conquistar a autossuficiência, quando se trata da produção de hemoderivados para o atendimento dos usuários do SUS (Sistema Único de Saúde).
Neste contexto, está em questão a segurança e qualidade dos serviços de saúde do país e a soberania brasileira. É importante falarmos dos riscos trazidos pela PEC do Plasma (Proposta de Emenda Constitucional 10/2022), em tramitação no Congresso Nacional. Primeiramente pode-se dizer que é uma PEC descabida. Ela representa um grande atraso ao sistema de coleta do sangue brasileiro, ao aproveitamento do sangue ou de partes dele.
Como se sabe, a PEC 10/2022 prevê a alteração do art. 199 do texto constitucional, que versa sobre a comercialização do plasma humano por entidades privadas e públicas e estabelece novos critérios para a doação. Dessa forma, a coleta de sangue, feita de forma solidária, passaria a ser remunerada. A PEC vai no sentido contrário à prática adotada pelos países desenvolvidos. Esses países trabalham na lógica da doação voluntária. A aprovação dessa proposta traria inúmeros prejuízos para o sistema de saúde brasileiro, sobretudo para aqueles que dependem do SUS. Sou contra a PEC 10/2022.
Para nós, especialistas, a grande preocupação quanto à PEC do Plasma é que, com a eventual alteração do texto constitucional, as novas regras multipliquem no Brasil exemplares de doadores profissionais. Seria uma realidade trágica, que eu não quero vislumbrar e repudio. Nos países onde há legalização da doação remunerada, nota-se um descuido com a saúde do cidadão que, muitas vezes, cria artifício para receber o dinheiro de que tanto precisa para subsistência. Quando a doação de sangue em determinado país é paga, verifica-se um claro prejuízo para as doações oriundas de atitudes altruístas e um consequente dano para o paciente. Defendo com veemência para que a doação no Brasil se mantenha no modelo atual, de maneira voluntária.
O mundo inteiro enfrenta a falta de alguns derivados, como a imunoglobulina. É uma realidade internacional, não apenas do Brasil - o que não dá direito a nenhum país tomar decisões duvidáveis. Que garantias teremos de que as empresas interessadas na PEC 10/2022 não virão a levar esse plasma brasileiro para processar fora daqui e vender a preço de mercado para onde precisar? Nenhuma. Esse plasma não voltaria necessariamente para o Brasil. Nada é garantido, uma vez que se trata de uma empresa privada. A partir do momento que essas empresas forem comprar o plasma, elas se tornarão “donas” da matéria-prima.
A aprovação da PEC 10/2022 abriria grandes e ameaçadoras portas para o uso do plasma humano por parte dos países de primeiro mundo, principalmente Europa e Estados Unidos. São eles que vão ser beneficiados com a venda do plasma “verde e amarelo” para a empresa privada. O Brasil - país continental como é o nosso, precisa de autossuficiência com relação à produção de hemoderivados.
O ideal é que tenha uma empresa pública, como a Hemobrás, que ajude a fortalecer a hemorrede e faça programas de doação voluntárias, com plasma excedente, mas também programas específicos de doação do plasma. Hoje, a tecnologia permite uma variedade de planejamento para a captação de doador, seja de sangue, doador de sangue fenotipado, doador de plaquetas e doador de plasma. Considero essencial que a Hemobrás tenha condições de atuar de forma integral, colocando seu potencial a serviço da produção de hemoderivados.
Não tenho dúvidas de que cabe ao Ministério da Saúde, com a parceria da Hemobrás, a gestão do plasma da rede pública e privada para que possa dar o direcionamento da política de derivados no país. O aproveitamento total do sangue e a transformação de seus derivados, assim como a gestão por parte de uma empresa 100% brasileira é, para mim, o melhor modelo. É este modelo que imagino como futuro do país.
JÚNIA GUIMARÃES CIOFFI, médica hematologista, presidente da Fundação Hemominas. Participou de grupos de trabalho do Ministério da Saúde, vinculados à Coordenação da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados
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