Padrão para as negociações internacionais desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o dólar enquanto moeda referência no comércio exterior pode estar com os dias contados. O início do enterro deve ser na África do Sul, onde, após três anos sem ocorrer presencialmente, por causa da pandemia da covid-19, a Cúpula dos Brics se reúne desde ontem.
Composto por Brasil, Rússia, Índia e China, além da própria África do Sul, o bloco representa cerca de 42% da população da Terra, quase 30% do território do planeta e controla 27% do PIB mundial, ou seja: força suficiente para direcionar a economia global e se posicionar como um contraponto ao G7, que reúne as nações mais ricas — ainda que o presidente Lula, que volta ao encontro após 13 anos, tenha negado ser esse o objetivo do grupo.
Por isso, o mundo acompanha com atenção os desdobramentos da reunião entre Lula, o chinês Xi Jinping, o indiano Narendra Modi e o sul-africano Cyril Ramaphosa. Ausência presencial, por causa da guerra contra a Ucrânia, o presidente russo Vladimir Putin participa de modo remoto. Entre as pautas do quinteto, está justamente a mudança que tem tirado o sono de executivos em Wall Street: o dólar deixar de ser usado como referência entre países em trocas bilaterais.
Um dos principais incentivadores da medida é, justamente o presidente Lula. Desde o início do ano, ele vem defendendo que países usem suas próprias moedas para suas relações. Ontem, voltou à carga, ao defender a adoção do yuan chinês no comércio entre Brasil e Argentina: "Para vender para o Brasil, não deveria precisar de dólar. Vamos trocar nossas moedas, e os Bancos Centrais fazem os acertos no final do mês. A gente não pode depender de um único país que tem o dólar, de um único país que bota mais dinheiro para rodar dólar e nós somos obrigados a ficar vivendo da flutuação dessa moeda. Não é correto", disse o presidente em Joanesburgo, cidade mais populosa da África do Sul, onde a cúpula do Brics está reunida.
A mudança causaria um impacto significativo no comércio global. Uma das principais vantagens seria a proteção de flutuações na política monetária dos Estados Unidos, que podem desencadear ondas de choque econômico em nações que têm o dólar como âncora. Exemplos recentes, como a crise financeira global de 2008 e a atual alta da inflação, que tem sido um dos desafios do Federal Reserve, o banco central norte-americano, demonstram como as ações internas dos Estados Unidos podem reverberar mundialmente.
Diversificar as moedas utilizadas no comércio internacional ajudaria a reduzir sensivelmente esses riscos sistêmicos, permitindo que as transações bilaterais fossem feitas tanto nas moedas próprias quanto em qualquer outra que esteja mais estável no momento, com o yuan chinês largando em vantagem. Isso pode impulsionar a estabilidade econômica global, promovendo um ambiente de comércio mais previsível e equitativo.
Naturalmente, a transição para a adoção de moedas nacionais para transações internacionais não será isenta de desafios. Mudanças tão profundas no sistema financeiro global vão demandar uma coordenação entre nações, uma infraestrutura tecnológica aprimorada para facilitar transações e acordos comerciais claros e transparentes. No entanto, os benefícios de longo prazo provavelmente superam os obstáculos iniciais.
É claro que os Estados Unidos não vão assistir a tudo isso de braços cruzados. Mas, imersos nos seus problemas internos, como a citada inflação e a ameaça da volta do controverso Donald Trump ao poder, é possível que o governo de Joe Biden não tenha forças ou paciência para se dedicar à questão, abrindo assim uma janela de oportunidade — que o Brics não vai deixar passar — para que um debate sério sobre a redução da dependência do dólar americano seja feito pelo mundo.
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