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Combustível

Artigo: Transição energética ou suicídio global

Degelo recorde, aumento acelerado da temperatura oceânica e possível colapso na circulação dos mares e, consequentemente, de todo o clima no planeta. A relutância da indústria do petróleo em promover a transição energética mais acelerada é como um cianureto coletivo mundial

Crédito: Mark Shwartz/Stanford Precourt Institut for Energy. Novo dispositivo que separa o hidrogênio do oxigênio em porções de água.
 -  (crédito: Mark Shwartz/Stanford Precourt Institut for Energy)
Crédito: Mark Shwartz/Stanford Precourt Institut for Energy. Novo dispositivo que separa o hidrogênio do oxigênio em porções de água. - (crédito: Mark Shwartz/Stanford Precourt Institut for Energy)
postado em 22/08/2023 06:00

Marcelo Coutinho - Pela primeira vez não houve inverno no Brasil, mas apenas frentes frias, em geral logo desfeitas. O mês de junho foi o mais quente na história mundial, e o mês de julho foi mais quente ainda. 2023 deve ser o ano com as maiores temperaturas médias já medidas, mesmo antes de começar o El Niño. O limite de 1,5ºC do Acordo de Paris foi alcançado por semanas, fazendo com que a comunidade científica se pergunte se já não é o caso de se trabalhar com o pior cenário. Termômetros na América do Sul enlouquecidos, um calor mortal, secas, inundações, safras perdidas e incêndios apocalíticos no Hemisfério Norte. Degelo recorde, aumento acelerado da temperatura oceânica e possível colapso na circulação dos mares e, consequentemente, de todo o clima no planeta. A relutância da indústria do petróleo em promover a transição energética mais acelerada é como um cianureto coletivo mundial.

As petroleiras e seus representantes nos governos acham que dá para explorar mais um pouco, por mais alguns anos, com novos poços. E assim caminhamos todos para um suicídio global. Se a fumaça em Nova York não foi suficiente, as mortes no Havaí deveriam já nos mostrar o tamanho dessa irracionalidade. Os sinais estão aí. E a única solução é mudar a matriz energética e descarbonizar as economias. Não, não é mais apenas coisa de ambientalista, e sim de sobrevivência. O hidrogênio é a peça central da transição energética e do novo desenvolvimento porque é a única forma de zerar as emissões de carbono na indústria.

Em primeiro lugar, é preciso não perder de vista que a transição energética objetiva salvar o planeta, a civilização, e não a indústria do petróleo nem a sucroalcooleira. Não dá para confiar que as empresas de petróleo e gás natural irão armazenar o carbono debaixo da terra. Sequer é possível saber quais os riscos de vazamentos desses cemitérios de carbono e outros problemas. Tais companhias não conseguem se ver livres do bunker, combustível de navio que produzem altamente poluente, porque seria muito custoso a elas guardarem todos os resíduos do refino. Imagine armazenar bilhões de toneladas de carbono. As petroleiras querem é ganhar tempo e dinheiro. O que elas investem em mais exploração dos combustíveis fósseis daria para pagar tranquilamente a transição para o hidrogênio, algo como 400 bilhões de dólares ao ano.

O petróleo é um mamute domesticado que cresceu demais e está destruindo a casa inteira. É hora de bani-lo. Os biocombustíveis e os hidrogênios de biomassa, por sua vez, são novos “mamutes”, pois sua produção emite também gases efeito estufa, ainda que num nível bem menor comparado aos combustíveis fósseis. É importante lembrar que todo o carbono que foi emitido continuará na atmosfera aquecendo a Terra, mesmo se pararmos completamente agora as emissões. Os hidrogênios orgânicos, do etanol ou do biogás e biometano, são boas segundas opções complementares para descarbonizar a economia. Ou alguém acredita que os
usineiros vão se conter? É tão inocente quanto confiar no autocontrole das petroleiras. Os próprios governos mentiram sobre a emissão de metano no setor energético, que foi 70% maior do que oficialmente informaram em 2021.

As plantas não reabsorvem todo o carbono emitido e os biodigestores aceleram as emissões em até dois anos. Além disso, os fertilizantes agrícolas estão entre os maiores emissores de carbono, sobretudo no Brasil. Faz menos sentido aumentar as plantações de cana e milho para produzir uma amônia mais limpa para biofertilizantes, para então plantar ainda mais cana de açúcar e milho, num ciclo que apenas diminuirá as áreas de terra destinadas a outras culturas
alimentícias, aumentando com isso o problema da fome. Para produzir o etanol de segunda geração é preciso gerar o de primeira geração, e para ser um substituto energético global será preciso ampliar muito a fronteira agrícola, subindo assim a probabilidade de novos desmatamentos. O hidrogênio musgo (biológico) definitivamente não é verde, e não terá a certificação internacional de verde. E por isso mesmo está fora do escopo de investimentos da Europa no Brasil.

As críticas que ainda são feitas contra o hidrogênio verde parecem de má fé. Não há desperdício de energia quando a fonte é inesgotável e excedente como o vento, ainda mais quando só tem razão de ser para a geração do H2V, que resolve numa só tacada os problemas de intermitência, estocagem, versatilidade e exportação das fontes primárias. Além disso, avanços tecnológicos já tornam esse novo combustível limpo plenamente viável. Hoje se gasta cerca de 50 kWh de energia renovável por quilo de H2V, o que significa uma eficiência de 65%.

Estima-se que em pouco tempo, com novos catalizadores e condições, caia para 35 kWh, subindo a eficiência para 95% (1 Kg da H2V gera 33 kWh de energia elétrica). O hidrogênio verde pode ser transportado por navios de forma cada vez menos problemática, e dentro de alguns anos se desenvolverá uma rede global de comércio. Porém, a forma mais rápida, simples, barata e segura de descarbonizar é com a injeção compulsória desse hidrogênio nas redes de transporte de gás natural. Isso reduzirá as emissões diretamente nas veias da economia. O hidrogênio verde é caro porque nunca foi desenvolvido em escala. Existem estudos sérios comprovando sua viabilidade em um horizonte curto de tempo. Em algumas áreas do norte-nordeste brasileiro sem escassez de água já é viável. A injeção compulsória do H2V nas redes de gás tramita no Congresso com o projeto de lei apresentado pelo atual presidente da Petrobrás, Jean Paul Prates.

Os europeus estão injetando o hidrogênio no gás encanado. Portugal começou com 1% de volume, e vai ampliar gradualmente o blend, a mistura com o gás natural. No Maranhão, ganha força a discussão de uma lei que obriga 5% de hidrogênio eletrolítico no gás até 2033. A ideia é lançar o H2V produzido na cidade de Icatu (MA) no
gasoduto que está sendo construído para abastecer de gás natural São Luís até a mineradora Vale. Existem várias rotas para a descabornização, mas a do hidrogênio verde (inorgânico e seus derivados) é a mais certa e promissora. A única sustentável e que não emite carbono. Os incentivos públicos precisam fazer essa distinção. Os investidores internacionais já fazem.

MARCELO COUTINHO, analista de hidrogênio e professor doutor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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