A inesperada vitória na Argentina do candidato à Presidência Javier Milei nas primárias das eleições do país — espécie de prévia da disputa oficial, em 22 de outubro — trouxe de volta ao debate um tema que, de tempos em tempos, surge como solução para as constantes crises dos países da América Latina: a dolarização da economia. Milei, se eleito, promete encerrar a circulação da moeda própria — no caso, o desvalorizado peso — e usar o dólar como o dinheiro oficial do país. Junto a isso viria a extinção do banco central do país, segundo o candidato, que se autointitula um anarcocapitalista.
Não é uma medida inédita. O Equador dolarizou sua economia em 2000, medida que segue em vigor. A própria Argentina fez algo semelhante entre 1991 e 1992, no Plano Cavallo, quando instituiu uma paridade de 1 por 1 entre o dólar e o austral, nome da moeda na época, em um movimento parecido como que foi o Plano Real no Brasil, em 1994. Mas a intensa crise do governo de Fernando de la Rúa, sucessor de Carlos Menem, entre 2000 e 2001, levou o país a abandonar a paridade, após limitar os saques a mil dólares mensais por pessoa, prática que ficou conhecida como "corralito" — ou cercadinho, em português — e levou à volta do peso.
Mas o fato é que a moeda norte-americana nunca foi totalmente abandonada, levando os argentinos a criarem diversas cotações paralelas (dólar blue, dólar Catar, dólar Coldplay, entre outros), além da cotação oficial, que tem venda restrita para o público em geral e é oferecida principalmente para setores industriais. Por isso, também é prática comum a troca dos pesos pelo dinheiro dos EUA, como forma de se protegerem da crise econômica cada vez mais severa do país.
A mudança, inclusive, traria um impacto imediato de estabilizar os preços do país, que tem uma inflação acumulada nos últimos 12 meses de 115,6%. Com o governo impedido de encher o mercado com papéis para financiar a sua dívida pública, é provável que este índice desabe. Além de ter uma equalização de preços com o mercado externo, a mudança também acabaria com a confusão dos câmbios paralelos, que se tornariam naturalmente obsoletos.
Apesar de bem-vindo, o controle da inflação viria acompanhado de uma perda de autonomia. Com o dólar como moeda oficial, a Argentina perderia a capacidade de conduzir sua política monetária e o banco central perde sua razão de ser, já que não pode mais controlar os juros — atualmente em impressionantes 118% ao ano — para dominar e ditar os ritmos da economia. Indiretamente, o Federal Reserve, o banco central dos EUA, obviamente mais preocupado com os rumos da economia norte-americana, é que passaria a controlar os rumos da Argentina.
É claro que, uma vez decidida, só a dolarização não será suficiente para salvar o país vizinho. É preciso que a Casa Rosada adote outras medidas, com uma política fiscal mais responsável. A questão é que Milei, que já afirmou que se orienta por cartas de tarô e se comunica telepaticamente com seus cães de estimação, dificilmente vai ser capaz de levar a mudança adiante como ela deve ser feita, o que pode agravar a já complicada situação local.
Maior parceiro comercial da Argentina, o Brasil deve acompanhar de perto e com interesse os desdobramentos dos próximos meses no país vizinho. Qualquer que seja o resultado, o Banco Central e o Ministério da Fazenda deveriam, desde já, iniciar medidas para aumentar suas reservas cambiais, manter o fluxo comercial entre os dois países e se proteger de medidas bruscas tomadas pelo governo de Buenos Aires, sob o risco de perder o pouco de segurança e estabilidade que conquistou nos últimos meses.
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