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Ação afirmativa

Artigo: A música negra como voz da resistência

Avançando um pouco na história, falemos do lundu, das danças de matrizes africanas ressignificadas no Brasil, que dentre outras formas de batuque fizeram nascer o samba, dando continuidade à sensualidade manifestadas nas letras do lundu

PRI-1208-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-1208-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)
Mariana Almada
postado em 12/08/2023 06:00

Desde que puseram os pés no Brasil, nossos ancestrais africanos mantiveram a religiosidade, a cooperação e dentre tantas outras modalidades e expressões, a vitalidade, a representatividade e resistência, inclusive por meio da música. Ao contrário do que afirma Gilberto Freyre em sua obra Sobrados e Mucambos no que se refere à “subordinação da gente de cor”. Segundo ele, a música era uma forma de unir as raças, mas é sabido que tal argumento não procedia, sobretudo, frente aos desajustes sociais da época e à condicionada falsa abolição.

Falemos das resistências negras, que inicialmente, aconteceram nas senzalas por força da religiosidade e do lúdico (“eu tenho uma nhanhazinha, de quem sou sempre moleque, ela vê-me estar ardendo, e não me abana c’o leque”), elementos que vão integrando-se à sociedade brasileira, herança africana que vai entrando nos espaços, uma forma de identificação e comunicação. Avançando um pouco na história, falemos do lundu, das danças de matrizes africanas ressignificadas no Brasil, que dentre outras formas de batuque fizeram nascer o samba, dando continuidade à sensualidade manifestadas nas letras do lundu.

“Quem não gosta de samba...” desinformado é! O samba teve outro lugar na história da resistência, no estreitamento entre as africanidades e as brasilidades, em suas relações, histórias e trajetórias tornando-o exclusivamente um gênero afro-brasileiro. O tempo passa e acirra a problemática social das regiões potencializadas pela questão racial. O nordeste sofre com a seca e surge a necessidade de rememorar as histórias dos antepassados, conquistar os lugares de identidade, e segundo Durval Muniz de Albuquerque Jr, “o medo de não ter espaços numa nova ordem, de perder a memória individual e coletiva, de ver seu mundo se esvair, é que leva à ênfase na tradição, na construção deste Nordeste.” O que na voz do intérprete do nordeste, o artista negro Luiz Gonzaga, natural de Exu-PE, retoma a saudade de uma nação que ele mesmo enfatiza: “minha vida é andar por esse país pra ver se um dia descanso feliz, guardando as recordações, das terras onde passei, andando pelos sertões e dos amigos que lá deixei”.

Mas a luta social, a história e as variadas formas de resistir contra a discriminação, racial, regional, de classe, é persistir. Falamos do Brasil dos anos 50, das migrações, da urbanização, consumismos, dos modismos dentre tantos outros “ismos”, que atingem a sociedade bem como as invisibilidades. A população negra continua sob os péssimos efeitos sociais, afetivos e psicológicos que a “abolição” provocou e colocou-as à margem da sociedade. “Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de se reeducar e de transformar para corresponder aos novos padrões e ideais de ser humano...” diz Florestan Fernandes.

Mas com Zé Keti, a força e a resistência do samba se impõem: “podem me prender, podem me bater, podem, até deixar-me sem comer que eu não mudo de opinião, daqui do morro eu não saio, não.” Impossível retroceder, é uma questão de oportunidade e apropriação dos espaços, é o morro elevando seu tom de voz. As letras continuam, para tomadas de consciência, compreensão do que vem a ser o racismo ambiental, e de lutas da população do morro em condições precárias as quais foram submetidas. É o que Gilberto Gil faz ao chamar a atenção dessas coletividades quanto a importância da participação social para o enfrentamento das desigualdades: “Nos barracos da cidade, ninguém mais tem ilusão, no poder da autoridade de tomar a decisão, e o poder da autoridade se pode, não faz questão, se faz questão, não consegue enfrentar o tubarão”.

Nesse contexto, também merece atenção o rap, cultura essencialmente da juventude negra e constantemente criminalizada. Assim, as letras surgem das mais variadas formas de resistência no cotidiano das favelas. Em meio às batidas que soam como um metrônomo, repercutem temas como a dor, a fome, a injustiça social, a superação e porque não a sexualidade e drogas que permeiam esses espaços.

Pela força e resistência, que possamos rufar os tambores em nome de uma nova consciência que surge: a consciência negra no que se refere ao pertencimento, à autodeclaração e à livre manifestação para a apropriação de espaços jamais vistos outrora. E que a voz não silenciada ecoe nos “autos” da nossa ancestralidade, que um dia lutou para que continuemos nessa trajetória, mais fortalecida aos que virão.

*MARIANA ALMADA, arte-educadora, psicanalista e fotógrafa

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