NULL
HOMENAGEM

Artigo: Dad,

"Sabe a primeira imagem que me veio à cabeça quando eu soube que seu padecimento havia acabado? Foi a sua gargalhada ao mesmo tempo doce e irônica"

Dad Squarisi: elegância e sorriso marcantes -  (crédito:  Raimundo Sampaio/ENCDF/D.A Press)
Dad Squarisi: elegância e sorriso marcantes - (crédito: Raimundo Sampaio/ENCDF/D.A Press)
Conceição Freitas
postado em 11/08/2023 10:11 / atualizado em 12/08/2023 12:44

Sabe a primeira imagem que me veio à cabeça quando eu soube que seu padecimento havia acabado? Foi a sua gargalhada ao mesmo tempo doce e irônica. A voz aguda ecoava de um modo elegante como a de uma Maria Callas descalça, no quintal de casa, rindo da vida. Desde que soube de sua morte só te vejo rindo e me tranquilizo.

Eram muitas as Dads. A Dad elegante era a mais elegante das Dads e de todas as mulheres que conheci. A pele branca, o corpo esguio, o cabelão cacheado, as roupas de corte de alfaiataria - mesmo os jeans pareciam cortados com tesoura de ouro. Tudo era uma coisa só, como se você tivesse nascido pronta. Como uma rainha (uma deusa?), você atravessava a redação do Correio, o imenso corredor sob a luz forte do palco da vida, e eu acompanhava, fascinada, aquela aparição.

Quando te chamo de elegante, Dad, não estou me referindo apenas à elegância de passarela, me refiro à alma em sua condição mais discretamente airosa e ao mesmo tempo deslumbrantemente imperativa.

Dad era silêncio. Parava e observava bastante, antes de dizer qualquer coisa. Dad era companheirismo em momentos ruins da vida. Quando quase ninguém estava ao meu lado, lá estava ela, sem alarde, quase sem se mover, sem abrir a boca, me dizendo muito claramente que estava comigo e eu me sentia acompanhada. Quando meu filho passou no vestibular, corri pra contar pra Dad. Por que será? Porque eu sabia que seus olhos gigantes iam sorrir intensa e verdadeiramente.

Será que você percebia o quão imensamente árabe você era? A força descomunal construída em milênios de desertos, guerras, lutas e resistências. Você tinha essa força, Dad, mas era como uma leoa dentro de um passarinho - traçava o voo por entre paisagens de espinho e saía do outro lado, como se tivesse saindo das nuvens.

E como ríamos dos acontecimentos risíveis da redação, como era bom rir com você do ridículo do outro, do ridículo da vida, do ridículo de nós mesmos.

Quando fui dar aulas de jornalismo numa faculdade particular (empreendimento logo fracassado), Dad se ofereceu - tão sutilmente que por pouco não percebi — para uma sessão de língua portuguesa, ortografia, gramática e figuras de linguagem. Combinamos de nos encontrar na entrada da escola e Dad chegou dadmente vestida com as peças da melhor qualidade, o cabelo revolto hiperbem cortado, o scarpan que parecia feito por um artesão italiano renascentista. A aula, preparara com esmero, deixou os alunos boquiabertos. Nem um pio durante todo o tempo e ao final aplausos, aplausos!

Quando eu reclamava muito da vida, Dad me lançava um olhar ao mesmo tempo crítico e benevolente como quem diz 'minha querida, você não faz ideia de como a vida pode ser difícil'.

Depois do primeiro transplante de medula, Dad quis lançar um livro na banquinha da 308 Sul. As vacinas haviam chegado mas a pandemia ainda não havia acabado. No começo da tarde, lá estava a autora, acompanhada de duas diligentes amigas. E, ainda debilitada, passou mais de três horas fazendo dedicatórias, ouvindo um a um os leitores, mesmo aqueles que, muito inconvenientes, contavam-lhe histórias sem fim.

O olhar da Dad naquele dia foi o olhar mais absurdamente forte que já vi na vida. Toda a coragem libanesa da minha amiga se concentrava nos olhos. Eu nunca havia reparado o quanto eram grandes, sólidos, destemidos.

E com que elegância atravessou a leucemia! Ainda convalescente, me consolou no meu luto: 'Tudo passa, olhe pra frente, minha amiga, tudo passa. E a vida não acaba aqui'.

A vida não acaba aqui, Dad. A vida que reluzia dos seus olhos naquela tarde de autógrafos seguirá eterna. Tão eterna quanto a sua gargalhada maliciosa. Você sabia muito mais do que dizia, você era muito muito mais do que deixava o mundo antever. Os seus olhos e seu riso diziam por você. Dad, você era uma força da natureza -- da natureza humana. Imenso beijo, minha muito querida Dad.

 Conceição Freitas é jornallista

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

-->