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Imigrantes

Artigo: Meu pai

Mais de meio século após sua morte, ainda tenho dificuldades em fazer um balanço equilibrado das dificuldades que ele enfrentou para nos educar, quatro filhos, três homens e uma mulher

PRI-0608-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-0608-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)
Jaime Pinsky
postado em 06/08/2023 06:00

Imigrantes são pessoas que abrem mão de muita coisa — começando pelas suas raízes — para se arriscarem em espaços, climas, ambientes, línguas e hábitos desconhecidos. Nos casos em que os imigrantes abandonam sua terra de origem apenas fisicamente, pois continuam trazendo o lugar, só que idealizado, no coração, pode ocorrer um choque cultural que vai afetar gerações. Com meu pai foi assim.

Mais de meio século após sua morte, ainda tenho dificuldades em fazer um balanço equilibrado das dificuldades que ele enfrentou para nos educar, quatro filhos, três homens e uma mulher. Não me refiro apenas às dificuldades materiais (que não foram poucas), mas ao choque entre os valores e práticas da cultura eslavo-judaica do shtetl, de onde ele veio, e o universo da cultura brasileira, de classe média urbana, em meados do século 20. Não foi fácil para meu pai. Nem para meus irmãos. Muito menos para mim.

Meu pai tinha vivido, em Prujane, perto da cidade de Minsk (era Polônia, hoje é Belorus). Seu pai, meu avô não era muito dado a punir os filhos fisicamente, prática comum naquele lugar e época. Era homem estudioso, tranquilo, pacífico. Cabia à minha avó exigir respeito e ordem aos seis filhos e alguns sobrinhos, que viviam na casa do tio que, sem ser rico, possuía um pequeno moinho de trigo que garantia o pão de cada dia. E ela terceirizava os castigos, atribuindo a tarefa à minha tia Ana, irmã mais velha do meu pai. Quem tinha o poder castigava, quem tinha aprontado apanhava.

Assim meu pai foi educado, assim ele era. Quando se casou e constituiu a própria família, em Sorocaba, não considerava errado usar o cinto e dar umas lambada no filho. O uso do cinto ocorria também quando não tirávamos notas boas, aquelas registradas com tinha vermelha em nossas cadernetas escolares. Não adiantava explicar, não havia explicação possível. Era inútil apontar as notas azuis em todas as demais matérias. Tínhamos a obrigação de tirar boas notas em tudo: “Vocês têm tudo de bom em casa, não precisam trabalhar na lavoura, que é para onde irão se não estudarem”, ele pontificava.

Durante a infância dele, a hierarquia tinha sido rígida: uns mandavam, outros tinham que obedecer. Era natural para meu pai que com seus filhos a coisa fosse igual. Ele não questionava a prática, ele não se questionava. Assim agiram com ele, assim agia conosco. Mas, para mim, o problema principal não eram as cintadas, muito episódicas em meu caso. Havia um campo mais delicado, o da fé, da prática religiosa e da identidade judaica. Meu pai entendia que cultura era uma corrente milenar que passa de geração após geração, e nenhum de nós tem o direito de romper um elo desta corrente. Simples assim.

Ser judeu não era escolha, era destino e obrigação. Não cabia a nós escolher, se já tínhamos sido escolhidos. E por ninguém menos do que o próprio Deus! E para meu pai o judaísmo era aquele que ele conhecia: era viver no shtetl, mesmo morando em Sorocaba, era falar iídiche entre os membros do grupo, era frequentar regularmente a sinagoga, era seguir rituais estranhos, era buscar e se casar com moça judia e ter filhos judeus, seguidores da religião, dessa religião. Isso em um ambiente quase sem moças judias e com lindas meninas católicas pululando na escola e nas ruas.

Para justificar sua filosofia meu pai costumava buscar, nos escaninhos da memória, frases que devia ter ouvido de alguém, ainda em Prujane: “Você se acha mais inteligente do que todas essas pessoas que formaram a corrente de milhares de anos, a corrente que liga Moises, Abrão, os profetas, todos eles, aos judeus de agora, a nós?” Ele me pergunta a sério, certo de que agora, depois de sua frase, eu não ousaria romper a tal corrente, nem questioná-la. Só que eu respondia. E ousava dizer que, se não questionássemos o conhecimento e as práticas sociais dos nossos ancestrais, seriamos ainda macacos, estaríamos pulando de galho em galho, por aí. O questionamento é que nos fez humanos, acrescentava. Ele fica furioso, não entendia o que tinha feito de errado para ter um filho assim...

Acostumado com o conhecimento revelado, absoluto, indiscutível, ele tinha dificuldade em aceitar um questionamento racional do filho. Questionamento muitas vezes carregada de atrevimento. Sentia-se desrespeitado. A ausência de uma língua comum comigo era muito sofrida para nós dois. Claro que a agressão física não resolvia o seu problema. Quando me perguntava, no final de uma discussão: “como você foi ficar assim?”, confessava o distanciamento, pois não me entendia, mas revelava uma ponta de admiração pelo filho que apresentava argumentos de pese contra seu poder paterno. Hoje, não tenho dúvida em reconhecer que ele sofria mais do que eu.

Mesmo porque, no final das contas, era homem de excelente caráter, honesto, trabalhador, leal. Amava e respeitava muito minha mãe. Acordava antes dela para preparar o café da manhã. Nunca ergueu a mão contra ela. Era generoso. Colaborava com asilo de velhos, casas de mães solteiras, cegos, paralíticos e todos os que resolvessem passar na loja solicitando ajuda. A segurança que meu pai passava, em um mundo tão inseguro, fez muito bem aos filhos, todos empenhados, embora de formas distintas, em deixar o mundo melhor do que encontraram.

Quando ele fica doente, faço o que devo, ocupo o lugar que me cabe. Simples assim. Corro atrás de médicos. Era um mundo ainda sem marca-passo para ajuda-lo, seu coração explode. Começou cedo a entupir artérias, sai do hospital debilitado. Tem muita energia, reage e luta, mas a doença é cruel. Em outubro de 1970, antes de completar 60 anos, entrega os pontos. No dia seguinte, o enterro. Muita gente de Sorocaba. Parentes. Amigos. Assim me contaram. Não me lembro de nada. Não ouço nada. Não choro. Não sinto.

Quero ter mais uma conversa, ao menos mais uma. Quero dizer para ele que o entendo. Quero contar que estudei história para entender as pessoas como seres sociais e me dei conta de que ele foi a melhor pessoa que podia ser. Com certeza tenho orgulho dele. A rua com o nome dele, em Sorocaba, talvez seja meio micha, mas é onde fica o Horto Florestal da cidade. Um presente para quem adorava a natureza. Penso em suas contradições. Meu pai foi um judeu que amava feijão com arroz, um polonês que adorava Sorocaba e o Brasil, um marido que amava sua mulher e (embora raramente confessasse) tinha orgulho de cada filho. Talvez não tenha sido um ser humano perfeito, mas foi o melhor pai do mundo.

*JAIME PINSKY, professor, editor e escritor

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