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FORÇAS ARMADAS

Artigo: Seremos peões sacrificáveis?

O mundo do século 21 não é pacífico. Perguntem aos ucranianos invadidos pelos russos em fevereiro do ano passado. Peçam-lhes que descrevam as atrocidades do conflito, as perdas físicas e as emocionais

O mundo do século 21 não é pacífico. Perguntem aos ucranianos invadidos pelos russos em fevereiro do ano passado -  (crédito: Caio Gomez)
O mundo do século 21 não é pacífico. Perguntem aos ucranianos invadidos pelos russos em fevereiro do ano passado - (crédito: Caio Gomez)
postado em 02/08/2023 06:00 / atualizado em 03/08/2023 09:17

"Já não existem guerras." A frase de abertura no livro A utilidade da guerra, do general Sir Rupert Smith, por vezes deturpada pela ânsia da paz, afirma, na verdade, que as guerras clausewitzianas e westfalianas foram substituídas pela guerra entre o povo, característica dos conflitos pós-guerra fria. O general cometeu um equívoco em sua avaliação. Talvez tenha contaminado com a sua postura as forças de seu país e as da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), anestesiando-as até a eclosão da invasão da Crimeia pela Rússia, em 2014.

O mundo do século 21 não é pacífico. Perguntem aos ucranianos invadidos pelos russos em fevereiro do ano passado. Peçam-lhes que descrevam as atrocidades do conflito, as perdas físicas e as emocionais. As condições das guerras podem ter mudado e o campo de batalha tridimensional tornou-se multidimensional. Todavia, não mudaram os interesses dos estados em projetar poder. E não há indícios de arrefecimento desse comportamento.

Assim sendo, o estudo sobre a segurança e defesa de um país indica a substituição do conceito de paz estável pela paz relativa. Ou seja, estamos em guerra, mesmo que não a percebamos. Dois coronéis do Exército de Libertação Popular da China, Qiao Liange e Wang Xiangsui, escreveram no livro A guerra além dos limites, na década de 1990, que "a guerra, que se submeteu às mudanças da moderna tecnologia e do sistema de mercado, será desencadeada de forma ainda mais atípica. Em outras palavras, enquanto presenciamos uma relativa redução na violência militar, estamos evidenciando, definitivamente, um aumento na violência política, econômica e tecnológica".

Enquanto o general inglês não acreditava em grandes conflitos como os da era industrial, os chineses já se preparavam para enfrentar a futura competição contra a águia americana, usando novas regras e novas "luvas". É nesse contexto que o Exército brasileiro há alguns anos vem analisando cenários prospectivos e buscando se enquadrar agilmente nesse mundo incerto, ambíguo e violento.

O Cenário Militar de Defesa, elaborado pelo Ministério da Defesa, é o farol a guiar as Forças Armadas brasileiras rumo a uma boa enseada, enquanto espera a reestruturação e a atualização de suas capacidades. E o Exército, para melhor compreensão desses desafios, lançou, neste ano, o manual de fundamentos que trata do Conceito Operacional do Exército Brasileiro (Coeb). O documento descreve como a Força Terrestre será empregada face aos desafios futuros, com um horizonte demarcado para 2040.

Como premissas para a formulação do Coeb, a Força Terrestre elencou algumas circunstâncias que definirão o planejamento rumo ao horizonte definido. Não existe indicação de que a missão constitucional e as atribuições subsidiárias da Força sofrerão alterações neste período de tempo. O aumento exponencial da aplicação militar de tecnologias críticas contribuirá para o agravamento das assimetrias de poder.

A carência de grandes contingentes de reservas mobilizáveis, capazes de acorrer a qualquer rincão do país, emprestará importância fundamental para a estratégia da presença, instando, como consequência, a manutenção do serviço militar obrigatório. A região Amazônica, em razão de sua extensão territorial, baixa densidade demográfica, dificuldade de mobilidade, abundantes reservas de minerais, de biodiversidade e hidroenergéticas, exigirá aumento da presença do Estado para o desenvolvimento e integração daquela região.

As mudanças climáticas e seus impactos nas relações entre países ou blocos de países influenciarão e promoverão aumento dos riscos sociais, políticos, geopolíticos e militares em curto espaço de tempo. Algumas potências descrevem o fenômeno como maior desafio a ser enfrentados por seus soldados nos próximos anos.

A guerra informacional assumirá maior relevância com o incremento de ferramentas tecnológicas como IA, boots, fake news etc., depreciando o processo de comunicação institucional testado e consolidado por anos. Ciente dessas possibilidades, o Exército antevê a priorização das capacidades militares nos campos marítimo, terrestre, aéreo, eletromagnético, cibernético e espacial, interagindo nas dimensões humana, operacional e física do campo de batalha futuro, como solução inescapável para a preservação de nossa soberania.

Muitas perguntas carecem de respostas. Como se combatem inimigos sem uniforme? Como gerir a opinião pública? Será cada soldado um político? Combate-se sob a avaliação da imprensa ou para a imprensa? Que preço estamos dispostos a pagar pela vitória? Há muito ainda a questionar. Nosso maior desafio como profissionais das armas é despertar a conscientização das lideranças e da população em geral para a relevância do tema. A outra opção é aceitar sermos peões sacrificáveis no jogo da guerra da próxima geração.  

* OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS - General da reserva, foi chefe do Centro de Comunicação Social do Exército

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