O trabalho forçado é um mal que se ajustou à marcha da humanidade, assim como um agente patogênico que se adapta a um organismo para continuar se sustentando. Semelhante a remédios que podem perder a eficácia diante de uma patologia, normativos formais podem se mostrar insuficientes para extirpar o trabalho análogo ao de escravo, que foi teoricamente abolido nas leis e veementemente repreendido na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Atenta a este movimento, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) ajustou o seu diagnóstico sobre esta violação aos direitos individuais. Se antes o órgão havia definido o trabalho escravo como "trabalho forçado ou obrigatório sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual o escravizado não se ofereceu de espontânea vontade", a modernização das relações sociais e das estruturas de produção levou à atualização do conceito para "trabalho escravo contemporâneo".
De acordo com a OIT, o trabalho forçado ou escravo contemporâneo passou a exteriorizar-se mundialmente por meio da escravização no modelo próximo ao colonial, somada a raptos; participação obrigatória em projetos de obras públicas; trabalho forçado na agricultura e em regiões rurais remotas por meio de sistemas de recrutamento coercitivo; trabalho forçado no meio doméstico; trabalho em servidão por dívida; trabalho forçado imposto por militares; trabalho forçado no tráfico de pessoas e alguns aspectos do trabalho em penitenciárias, sob o pretexto de reabilitação.
A OIT aponta ainda que alguns grupos, como mulheres, minorias étnicas ou raciais, migrantes e, sobretudo, pessoas em condição de vulnerabilidade social, são particularmente desprotegidos às formas contemporâneas de escravização.
Em 2003, com a alteração da redação do artigo 149 do Código Penal, adotaram-se no Brasil conceitos da Corte Interamericana de Direitos Humanos para ampliar o tipo penal anteriormente aplicado ao trabalho análogo ao de escravo. A interpretação do dispositivo passou a privilegiar condenações por outras práticas além da "mera" restrição da liberdade. Assim, possibilitou-se a criminalização de condutas mais amplas, como a sujeição a condições degradantes de trabalho. Além disso, o legislador majorou a pena quando o crime ocorrer por motivos de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Ainda assim, o Brasil segue com números que não poderiam ser admitidos em nenhuma circunstância. Conforme dados do Ministério do Trabalho e Emprego, só nos primeiros quatro meses de 2023 foram resgatadas mais de 1.200 pessoas em situação análoga a de escravo, um amargo recorde considerando os índices registrados nos últimos 15 anos. A versão atualizada da chamada "lista suja" contabiliza mais de 280 empresas reportadas como sociedades que se utilizaram de mão de obra análoga à escravidão.
Os números demonstram que o Brasil ainda não aboliu a escravatura como se pretendia. Ainda que se reduza o número de resgatados ao ideal de "patamar zero", a explicação para essa demora no combate ao trabalho análogo ao de escravo repousa na amplitude territorial do país e na necessidade de maior aparelhamento dos órgãos e agentes fiscalizadores do Poder Público.
A Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional promove debates acerca do tema, mais especificamente sobre o Projeto de Lei 5.970/2019 que busca regulamentar a aplicação do artigo 243 da Constituição Federal. Este artigo prevê a expropriação, em benefício da reforma agrária, das propriedades rurais e urbanas em que for verificado a exploração do trabalho escravo — uma novidade inserida em 2014 a um dispositivo que, até então, limitava esta destinação apenas em caso de cultivo de substâncias ilegais.
Muito embora o comando constitucional não necessite de regulamentação para sua plena implementação, o projeto procura demandar, mais uma vez, efetiva e equânime forma de punir aqueles que persistem em negar às pessoas o exercício de seus direitos fundamentais.
Assim, a nova redação do artigo 243 da Constituição Federal buscou imprimir maior efetividade ao combate ao trabalho análogo ao de escravo reforçando, no viés econômico, o crime previsto no artigo 149 do Código Penal. De toda forma, diante dos preocupantes números de pessoas resgatadas todos os anos em condições degradantes, verifica-se verdadeira falta de aplicabilidade do comando constitucional, já que são poucos — para não dizer nulos — os índices de casos em que a punição máxima foi efetivamente aplicada.
O PL nº 5.970/2019 representa mais uma tentativa do Legislativo em punir efetivamente quem explora o trabalho análogo ao de escravo. O texto faz menção a outro projeto do Senado, já arquivado, que em 2013 reconhecia que os mecanismos de fiscalização e o Código Penal não foram capazes "de riscar essa vergonha de nosso mapa trabalhista".
Além disto, o PL 5.970/2019 também reverencia as exposições de motivos do PL de 2013, incluindo definições constitucionais para condições análogas a de escravo, entre elas: "a sujeição à jornada exaustiva, entendida como aquela que, por sua intensidade ou extrapolação não eventual com prejuízo ao descanso e convívio social e familiar, cause sobrecargas físicas e mentais incompatíveis com a capacidade psicofisiológica do trabalhador, expondo-o a elevado risco para a saúde ou de ocorrência de acidente de trabalho".
É importante relembrar que a intenção do legislador neste projeto não é a de proteger o trabalhador dos grandes centros urbanos, que também sofre com a sobrecarga de trabalho, tendo em vista a existência de regulamentações trabalhistas suficientes para tanto. O PL de 2019 busca erradicar a exploração desumana do trabalho. A intenção é que a atividade seja cada vez mais ligada ao conceito de "trabalho decente", assim entendido como aquele "adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança e capaz de garantir uma vida digna".
A verdade é que o trabalho em condições análogas à de escravização segue presente, enquanto delegamos esperanças a mais uma tentativa do Poder Legislativo. Enquanto o mundo já discute uma possível implementação de semana de trabalho de quatro dias, é lamentável que o Brasil não tenha, ainda, conseguido erradicar prática tão repugnante.
Espera-se que o legislador tenha sucesso na regulamentação da matéria e que possamos testemunhar a efetiva extinção da prática escravagista de nossa sociedade.
Aloizio Lima, Victor Fernandes e Rosana Gomes - Advogados
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