Política

Artigo: O chuchu de cada um

Interessante perceber que as quatro figuras descritas encontraram na comida o escudo contra acusações de elitismo

Em 1939, Carmen Miranda embarcou para os Estados Unidos (EUA). No horizonte, assomavam sinais ameaçadores da guerra que estava para estourar. Para os serviços americanos de inteligência, estava fora de questão que o Brasil, país mais importante da América Latina, se alinhasse com as ditaduras nazi-fascistas. Junto a outros esforços para cativar nossa simpatia, o governo de Washington decidiu importar uma artista brasileira com potencial de mostrar ao público americano uma faceta atraente e simpática de nosso país, e, ao mesmo tempo, levar os brasileiros a se orgulharem do sucesso de uma compatriota nos EUA.

A escolha recaiu sobre Carmen Miranda e ela viajou. Um ano depois de ter deixado o Brasil, voltou para apresentações no Rio de Janeiro. Não se sabe ao certo a razão — talvez por pura inveja —, a recepção a ela foi pouco calorosa. Um diz que diz pérfido chegou a espalhar que a artista, depois de um ano fora, tinha ganhado dinheiro mas perdido o ritmo e a graça.

Luiz Peixoto e Vicente Paiva compuseram então o samba “Disseram que eu voltei americanizada” especialmente para ela. A letra repele veementemente toda “americanização” e termina: “Enquanto houver Brasil, na hora das comidas, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”. Chuchu (ou maxixe) é legume popular. Na cabeça de pobre, “rico não come chuchu” (embora nem sempre seja verdade). O fato é que, lançada a música, Carmen logo recuperou os fãs ressabiados. O povão voltou a se identificar com a cantora, que, mesmo enricada, continuava comendo chuchu.

Antes de chegar à Presidência, o jovem Jânio Quadros teve ascensão fulgurante. Em pouco mais de dez anos, foi vereador, deputado estadual, prefeito, deputado federal e governador. Desde muito cedo, frequentou palácios, recepções e banquetes. Na base de seu eleitorado, porém, estavam pessoas simples, de parco poder aquisitivo. Não ficava bem que imaginassem o “político que varria a bandalheira” levando vida de rico, longe do quotidiano das massas.

Para desfazer essa impressão, Jânio sempre cuidou sua aparência quando discursava em comício. Vinha desgrenhado e com caspa no ombro. Lá pelas tantas, tirava do bolso um sanduíche de mortadela já mordido e explicava ao auditório que não tinha tido tempo de almoçar (ou jantar, conforme o caso). Era sua maneira de mostrar que continuava comendo chuchu.

Logo no início de sua gestão, Jair Bolsonaro foi um dia apanhado comendo lagosta com um embaixador estrangeiro. Em 2021, enquanto brasileiros empobrecidos substituíam carne por ovo, foi fotografado exibindo a embalagem do prato de resistência de seu almoço daquele Dia das Mães: picanha de R$ 1.799 o quilo. Pegou mal.

Decerto aconselhado por algum assessor, o então presidente resolveu mostrar humildade. Um dia, deixou-se filmar enquanto comia, junto a uma barraquinha de rua, uma porção de frango com farofa. Com as mãos, sem talher. Era sua maneira de dizer que continuava comendo como o povão. Só que, desastrado, emporcalhou-se todo, espalhando farofa na calça e na calçada. A emenda ficou pior que o soneto. Seu chuchu não convenceu.

No quesito viagens internacionais, Lula 3 começou a todo vapor. Em seis meses, tinha visitado uma dúzia de países distribuídos por três continentes. Um luxo. Mas o partido em que ele militou a vida toda (PT) prega, em teoria, um mundo de desigualdades sociais aplainadas. Assim, não fica bem o presidente, só porque presidente é, ser recebido por figuras principescas, participar de banquetes e comer do bom e do melhor sem ao menos trazer um pratinho de doces para os catadores.

Um assessor mais atento — ah, esses assessores! — talvez tenha chamado a atenção do chefe para esse contrassenso. Luiz Inácio resolveu remediar. Ao retornar de recente viagem à França e à Itália, queixou-se publicamente das refeições que lhe costumam oferecer no exterior. Disse que, quando viaja, não tem ocasião de comer do que gosta, na quantidade que lhe apraz. Afirmou que, nos banquetes, “as porções são minúsculas”, é “tudo pequenininho”, não tem uma” bandejona pra gente se servir”. Dia seguinte, a mídia francesa e a italiana não perdoaram a gafe.

É interessante perceber que as quatro figuras aqui descritas encontraram na comida o escudo contra acusações de elitismo. Esses quatro não devem ser os únicos. O mundo é vasto e cada um tem sua maneira de dizer que adora comer chuchu.

JOSÉ HORTA MANZANO, empresário

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