Sepúlveda Pertence

Artigo: Pertence

À nossa geração — que tem no legado de Pertence um modelo superior de pensar a ser seguido —, caberá o compromisso de manter viva a advertência e fazer valer tudo que nela se contém

Para muitos colegas da geração de jovens advogados que buscaram na nova capital o portal da carreira escolhida, ele era José Paulo. Talvez pela intimidade pessoal, pelas pródigas origens mineiras comuns, também pela contemporaneidade, José Guilherme Villela, Modesto de Oliveira, Eduardo Ribeiro, João Carneiro de Ulhôa, José Gerardo Grossi, Carlos Mario Velloso, Manoel Coelho, Luiz Claudio de Almeida Abreu, Valtênio Mendes Cardoso, Mauro Leite Soares, Marco Jorge Caldas Pereira, todos eles amigos tão próximos a ele — depois Claudio Penna Lacombe, D'Alembert Jaccoud —, aos quais adiciono, mais recentemente, Antonio Carlos Dantas, Fernando Neves, Henrique Neves, identificaram-no sempre com o seu prenome, José Paulo, ou Zé Paulo, ou apenas Zé.

Para mim, que o conhecera no ano de 1961, ele era Pertence. Ele era Pertence, por igual, para o saudoso Victor Nunes. Uma escolha? Um distanciamento involuntário? Uma realidade me acode: apesar do mesmo estádio da existência, gostos assemelhados, preferências próximas, visões da história muito análogas, Pertence se colocava diante de mim - e do próprio fundador da Sociedade dos Advogados Nunes Leal, desde os idos de 1969 - o primus inter pares, o primeiro entre os seus iguais, o que mais se distingue, o que mais sabe.

Uma inteligência que sobressaía acima de todos, uma equipagem jurídica marcada pela originalidade e pela firmeza, na exposição oral ou escrita. Nenhum adjetivo, advérbios de modo eram caso de UTI com desligamento dos tubos... A exposição sempre transparente, dentro de uma lógica impecável, quase dialética, sem prejuízo da grande erudição e da forma. Acompanhei desde muito cedo a liderança que o jovem advogado José Paulo Sepúlveda Pertence exerceu em nossa classe, dando continuidade a uma vida acadêmica marcada pela ação política, segundo seus colegas de faculdade, em Belo Horizonte, e seus companheiros nas lutas empreendidas quando militante da política estudantil na União Nacional dos Estudantes (UNE).

Testemunhei sua atuação impecável na política em nossa entidade de classe, na Seccional do Distrito Federal e no Conselho Federal, mostrando sempre, com absoluta fidelidade aos princípios que veem o social no centro da história, o rumo certo, as prioridades que indicam a direção do avanço contra as desigualdades e a exclusão e sua repugnância aos disfarces no processo político que permitiriam alianças capazes de lograr sucessos à custa da

limpidez da mensagem. Somente estiveram sob sua liderança política aqueles que se identificassem com as ideias pelas quais propugnava, tendo como fio condutor sua aversão à ditadura militar e tudo aquilo que representava de restrições e atrasos ao exercício pleno das liberdades públicas e à justiça social.

Já se apagou da minha lembrança o autor da história. Data do começo da década de 1960, quando Cuba sofria o impacto do cerco americano. As personalidades eram irradiantes mas bastante distintas. Che Guevara e Fidel Castro reinavam na cena política com igual liderança. Quando alguém perguntou a um viajante daqueles tempos que havia estado na capital cubana como o povo sentia na prática a diferença entre os dois líderes, respondeu-lhe: "Quando Guevara fala, nós nos sentamos para escutá-lo e, quando Fidel fala, nós nos levantamos para fazer o que ele quer". Muita gente costuma tirar dessa história a ideia de que Fidel é melhor. Fidel é quem fazia a revolução e impunha a ação. Já Guevara incitava o pensamento. Mas o pensamento era a mola propulsora da revolução.

Esse quadro de lembranças remete necessariamente ao preconceito que opõe o pensar ao agir e desqualifica o pensamento em benefício da ação. Nossa cultura valoriza a ação, os resultados tangíveis das coisas. Mas isso resulta apenas de uma inadvertência. A precedência do pensamento, com o brilho da ideia que ele sugere e contempla, é que logra produzir a indignação. É o pensamento que autoriza se recolha aqui a palavra final de Hobsbawm, já nonagenário, mas sempre um homem de pensamento: "(...) Não nos desarmemos, mesmo em tempos insatisfatórios. A injustiça social ainda precisa ser denunciada e combatida. O mundo não vai melhorar sozinho". Ensinamento que o pensamento produz e que se mantém em alerta, pela ação do próprio pensamento. À nossa geração — que tem no legado de Pertence um modelo superior de pensar a ser seguido —, caberá o compromisso de manter viva a advertência e fazer valer tudo que nela se contém.

 *PEDRO GORDILHO - Advogado

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