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RACISMO

Artigo: Sozinho na boca dos leões

O racismo é um tipo de violência que não se extingue quando um cartão vermelho é acionado, por exemplo, ou quando faixas com dizeres antirracistas são erguidas antes de um jogo. Ele é persistente, estrutural, quase visceral em sociedades de base colonial

opinião 2907 -  (crédito: Caio Gomez)
opinião 2907 - (crédito: Caio Gomez)
DANIELE MUNIZ LIMA GRANJA
postado em 29/07/2023 06:00

Imagine a seguinte cena: uma savana povoada por leões e circulando por entre o bando um imponente jovem humano. O que você acha que pode acontecer? Qual seria a sua reação imediata? Ou melhor, o que você diria a esse jovem? Vamos a algumas possibilidades: “Vai lá, não baixe a cabeça e encare de frente!”, “Olha, estou contigo para o que der e vier!”, “Não desista!”, “Você é forte!”, “Mostre o seu valor a esses leões!”, “Eles precisam aprender que a savana é lugar de todos e você merece respeito!”

Bom, independentemente do que tenha passado pela sua cabeça, caro leitor, imagino que não tenha sido próximo das alternativas apresentadas, certo? Posso até estar equivocada, mas creio que o instinto de sobrevivência, herdado pelos membros da nossa espécie, nos encaminha para outro padrão de resposta, normalmente direcionado à autoproteção e cuidado da nossa prole e do grupo social do qual fazemos parte.

No entanto, curiosamente, este tem sido o padrão de respostas apresentado por boa parte das pessoas que se dizem engajadas na luta antirracista. Evidentemente, a cena em questão não nos remete à problemática racial de forma direta, mas pode ser uma boa metáfora se fizermos um esforço não muito grande de relacioná-la ao ocorrido com o jogador de futebol Vinícius Junior, do Real Madri, na última semana. Um jovem atleta negro, oriundo de um bairro periférico de um país sul-americano se impõe em um território onde a prática racista é institucionalizada. Ele que é, sistematicamente, violentado, tenta se defender utilizando todos os recursos de que dispõe e no auge das agressões, em vez de receber o devido suporte protetivo, é incentivado a continuar lutando como um guerreiro fadado à morte num combate de desiguais condições de enfrentamento. Sozinho.

Assim tem sido a luta antirracista no Brasil e no mundo. Muitas palavras nas redes sociais e pouco engajamento de fato. Apesar da coragem, determinação e ativismo serem características fundamentais no enfrentamento às violências raciais, não são elementos capazes de, isoladamente, amenizarem a dor e sofrimento de quem vive a experiência do racismo, seja ele escancarado, como no caso do Vinícius Junior ou mais sutil, manifesto nas relações cotidianas herdado e engendrado pela estrutura colonialista.

Vini Junior tomou para si a responsabilidade de levar a luta antirracista, especificamente na Espanha, nos ombros. Em diversas oportunidades externou o desejo de seguir adiante posicionando-se à frente do combate. Tais posicionamentos têm gerado grandiosa comoção no universo futebolístico, mas não somente nele. Temos sido bombardeados por notícias em diferentes canais de comunicação sobre os desdobramentos do acontecido ao atleta que vão desde pronunciamentos individuais em redes sociais, a reuniões envolvendo relações diplomáticas entre os países envolvidos, a saber Brasil e Espanha. No entanto, o que pode parecer, num primeiro momento, um gesto nobre e honroso, pode se tornar problemático do ponto de vista da saúde mental. Isso porque Vini Junior está há muito tempo exposto a um estressor crônico.

O racismo é um tipo de violência que não se extingue quando um cartão vermelho é acionado, por exemplo, ou quando faixas com dizeres antirracistas são erguidas antes de um jogo. Ele é persistente, estrutural, quase visceral em sociedades de base colonial. A médio e longo prazo os efeitos desta luta interminável podem ser nefastos no corpo e na mente de quem escolhe o enfrentamento e também de quem não fez essa escolha, mas que sofre igualmente os seus efeitos. A exposição crônica ao racismo ativa o mecanismo fisiológico de luta e fuga, uma resposta ao estresse, deixando o sujeito em permanente estado de alerta. Se o estressor não desaparece, como consequência o corpo entra em fadiga, podendo levar a quadros severos de adoecimento físico e mental como transtornos de ansiedade e depressão.

Vinicius Junior não precisar virar um mártir. O incentivo ao enfrentamento solitário pode gerar agravamentos psíquicos, especialmente sobre pessoas como ele, jovem e atleta. Uma rede protetiva é urgente, um lugar físico e afetivo seguro para que possa ser refúgio pra valer. Que Vinícius sinta-se aquilombado e se fortaleça para, inclusive, retroceder e aquietar-se quantas vezes achar necessário. Aos racistas, interessa que ele se exponha solitário, a nós é improrrogável protegê-lo. Não deixemos nossos meninos entregues aos leões! 

 DANIELE MUNIZ LIMA GRANJA, mestre em psicologia social, especialista em psicologia do esporte, fundadora e diretora da Psique em Forma

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