"Senhor, umas casas existem no vosso reino,
onde homens vivem em comum, comendo do mesmo alimento, dormindo em leitos iguais [...]"
(Carta ao Rei de Portugal, por Moniz Barreto)
Esta semana fui convidado para a cerimônia de passagem para reserva de um antigo comandado. Evento simples, realizado em um auditório do Quartel-General do Exército, com a presença de civis, militares, antigos chefes e familiares do homenageado, cobriu-se de simbolismos e reavivou, mais uma vez, a chama dos valores e tradições que ornam a profissão das armas.
Em suas palavras de agradecimento, o militar sobrevoou a apaixonada carreira, iniciada há quase 40 anos, quando ingressou na Escola Preparatória de Cadetes do Exército com apenas 14 anos de idade. Falou emocionado dos desafios profissionais, das conquistas, das frustrações, das amizades construídas, da família constituída, das experiências múltiplas vividas e deixou uma mensagem aos ouvintes atentos: "Afasto-me consciente do dever cumprido, devedor inconteste da instituição e esperançoso que o país se supere e prossiga no caminho da paz e do bem-estar sociais". Suas palavras lembraram o general Osório, um dos mais importantes líderes militares na história do Exército brasileiro que afirmou: "A farda não abafa o cidadão no peito do soldado".
O militar referendou o sentimento de cidadão soldado reinante nos profissionais das armas — de ontem, de hoje e de sempre —, que é forjado desde as escolas de formação e amalgamado ao longo da carreira militar. Uma carreira, tão nobre quanto tantas outras, que difere das demais pelas características que impõe ao profissional e aos seus familiares.
O militar rodou o Brasil de ponta a ponta, morou em outro país de cultura diametralmente distinta, teve uma filha em uma cidade, o filho em outra, a esposa não conseguiu se fixar no mercado de trabalho, mas, a despeito do turbilhão, reconheceu-se um devedor da sociedade a quem se curva em sinal pronto de respeito.
Foi guerreiro e administrador, foi aluno e instrutor, liderou e foi liderado, uma mistura simbólica das atividades castrenses das quais se incubem os homens e mulheres das armas nos tempos modernos. Como ele, a cada ano, centenas de outros militares ao deixarem a farda física que os veste sentem as mesmas alegrias de um objetivo conquistado e as mesmas tristezas de um adeus sem volta.
É mesmo difícil compreender as servidões e as grandezas militares àqueles que nunca romperam a marcha, ao toque de clarim, tão logo o sol desponta no horizonte. E não vai aqui nenhuma crítica, nenhum apontar de dedos, nenhuma soberba, apenas constatação das diferenças dos mundos e da forma como encará-las. Contudo, o desconhecer pela incompreensão não legitima as críticas difusas que o estamento militar está a sofrer fruto do ambiente de chafurdo em que se meteu a sociedade brasileira nos últimos anos.
No momento em que a santidade das instituições antes imaculadas é questionada, que lideranças civis e militares são atacadas à luz do dia ou à sorrelfa das mídias digitais, que os parâmetros de comportamento social são postos à prova, é hora de questionar a quem interessa a desordem.
Lembrando Spinoza: "Não rir, não chorar, apenas entender". Certamente a desordem não interessa aos esclarecidos, aos que têm expectativas ordeiras e aos que pensam no futuro como bem a ser construído a muitas mãos, em benefício de muitas mãos. É necessário combater a emoção exacerbada e a razão rasteira dos que conhecem o mundo pela sombra bruxuleante do pensar de outros que nunca encontraram a luz.
Em alusão ao Mito da Caverna, alegoria escrita por Platão na obra A República, será preciso que destemidos tenham coragem e abandonem a escuridão das bolhas maniqueístas para serem aquecidos pela luz desinfetante do sol. Que pensem sem o corrimão das ideias extremadas e duvidem de suas certezas absolutas. Por fim, na montagem do grande quebra-cabeça cuja imagem mostrará uma sociedade brasileira integrada, assegurarem que as Forças armadas não poderão ser gangorra para disputas ou reconstruções ideológicas.
ERRAMOS
Este artigo foi assinado erroneamente como tendo sido escrito por Arnaldo Niskier, publicado na versão impressa do do Correio Braziliense desta quarta-feira (19/7) trouxe, na página 11 da editoria de Opinião. A autoria correta é de Otávio Rêgo Barros. O jornal pede desculpas aos autores e aos leitores pelos transtornos provocados pela publicação equivocada.
Otávio Santana do Rêgo Barros - General da reserva, foi chefe do Centro de Comunicação Social do Exército
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