As leis têm papel fundamental para reger a sociedade e o Estado numa democracia. Devem ser claras, específicas, adequadas à sua época, estabelecer parâmetros para solucionar conflitos. No trânsito, as normas têm papel especial para regular e tornar eficiente a mobilidade, proteger o meio ambiente, evitar acidentes e desastres nas vias. O Código de Trânsito Brasileiro, porém, cumpre mal suas funções.
O Brasil teve quatro códigos de trânsito. O primeiro, de 1941, teve vida curta, apenas oito meses. O segundo, que criou o Conselho Nacional de Trânsito, vigorou por 25 anos e foi substituído pelo Código Nacional de Trânsito, de 1966, que durou 32 anos. O atual, instituído pela Lei nº 9.503, que entrou em vigor em 1998, com apenas 25 anos está desatualizado e capenga. Com artigos ruins, ferramental inadequado e estrutura obsoleta, não dá conta das demandas atuais e será cada vez mais um estorvo no porvir.
Vivemos um pandemônio na legislação de trânsito. Políticos que conhecem pouco sobre os desafios da mobilidade tentam fazer demagogia mexendo na lei. Apenas como exemplo do descalabro, desde que foi promulgado com os iniciais 341 artigos, o Código de Trânsito teve dezenas de artigos eliminados, 239 alterados (70%), mais de 50 novos artigos incluídos. Virou uma lei Frankenstein. A parafernália infralegal igualmente bate recordes: quase mil resoluções, média de 40 por ano, e outras tantas portarias e deliberações. Quem lê tanta notícia?
Porém, mesmo com essa superabundância de alterações, o código continua impróprio para um trânsito cada vez mais desafiador. Primeiramente, vivemos em uma era digital e o código é analógico. Diversos processos nos órgãos de trânsito, mesmo que funcionem sobre plataformas digitais, são arcaicos e obsoletos. Os reconhecimentos de firma, os carimbos e os nada-consta ressuscitam em algum momento e o funcionário do guichê aparece com as exigências de praxe. Às vezes, o procedimento é simples, mas nos obrigam a lidar com formulários, requisições, reconhecimento de firmas. O cipoal burocrático sufoca, oprime e rouba horas do cidadão.
O segundo ponto é a inadequação do código para o nosso trânsito. Nasceu com imperfeições que pioraram com o tempo. Envelheceu precocemente. Há um montão de artigos que são completamente desconhecidos e solenemente ignorados. Nem o Estado respeita. Em um país diverso como o nosso, há normas surreais como o art. 88, que preconiza "nenhuma via pavimentada poderá ser entregue após sua construção (…) enquanto não estiver devidamente sinalizada, vertical e horizontalmente, de forma a garantir as condições adequadas de segurança na circulação". Que lorota! E há outros tantos artigos que são ignorados.
A terceira razão é que o Código de Trânsito tem um brutal desequilíbrio no peso das multas. Por cacoete histórico, queremos resolver tudo com a chibata. Comparemos Brasil e Portugal, para que possamos ter uma ideia. Cerca de75% das infrações em Portugal são leves, enquanto no Brasil essa categoria corresponde a apenas 10%. As infrações gravíssimas que perfazem 6% em Portugal, no Brasil somam 31%, cinco vezes mais. Temos uma pirâmide de multas invertida, como se pode observar nos gráficos abaixo.
Há uma série de infrações com altas penalidades que deveriam ser repensadas. Por exemplo, fazer falsa declaração de domicílio para fins de registro, licenciamento ou habilitação (infração gravíssima, art. 242) não colocar em risco a vida nem provoca danos à circulação. Muitos artigos são imprecisos e inaplicáveis. Outros excessivamente rigorosos como deixar de dar seta em uma mudança de faixa ou conversão. Pelo código isso é infração grave, multa de R$ 195,23 e cinco pontos na carteira. Se esse artigo fosse estritamente aplicado, a maioria dos condutores atingiria 20 pontos em algumas horas de condução e perderiam suas carteiras de motorista. Talvez aí estejam algumas razões para a frouxidão da fiscalização. Como corolário, o código continua aí capenga, desrespeitado e perigoso, como o próprio trânsito. Abraham Lincoln disse que a melhor maneira de revogar uma lei ruim é aplicá-la com rigor. O que aconteceria se o Código de Trânsito fosse realmente aplicado?
David Duarte - Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito (IST)
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