O marco temporal em análise no Supremo Tribunal Federal transparece haver sido construído, data vênia, sob as letras mágicas da engenharia jurídica, porém com ranços conservadores e acanhados ao definir um cenário sobre os direitos dos povos indígenas, que há mais de 500 anos viviam felizes no seio das selvas.
Existem no Brasil, reafirmamos, mais de 330 etnias indígenas entre as quais muitas que não falam a língua portuguesa e outras tantas que nunca viram o dito homem branco. Certamente, não sabem que autoridades do Judiciário privado e público estão a debruçar-se sobre as normas legais existentes para definir qual o futuro do indígena no novo milênio.
Apesar de toda sorte de invasão, as nossas aldeias e comunidades ao longo do tempo criaram formas de resistência sem conseguir impedir os avanços do setor expansionista do novo mundo com suas religiões, sistemas econômicos e soberania militar, e muito menos o poder público que nunca foi capaz de realizar uma consulta prévia, livre e informada diante de tais avanços. Historicamente, apenas em dois momentos recentes os povos indígenas, por méritos próprios, participaram na elaboração dos direitos constitucionais e na Organização das Nações Unida (ONU), quando dos debates sobre a implementação da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
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O mundo indígena, de maneira geral, nunca teve apenas um chefe que os espanhóis chamavam pejorativamente de cacique. Todos naqueles tempos praticavam o conceito de direitos coletivos e, assim, procediam em relação a casamentos, suas formas de verem Deus e na soberania alimentar e territorial. Nós, povos indígenas, nunca invadimos uma terra que não fosse o nosso próprio habitat. Não havia pedintes ou pobres nesse modelo de sociedade. Além do mais, eram nessas reuniões que se estabeleciam níveis de responsabilidades, muito parecidas com o que os juristas de hoje chamam de Justiça Restaurativa, em que basicamente um juiz é parte do processo, mas não decide sozinho.
Por seu lado, é preciso ter em conta que as manifestações culturais indígenas não se restringem às danças como se fossem um carnaval. Uma pintura, a cor do cocar e as danças representam códigos de identificação. Ninguém precisa se enfeitar de índio para mostrar sua identidade. Por isso, as festas sempre estavam conectadas com os sinais da natureza, do habitat que habitavam, como a Lua, o Sol, as estrelas e os assobios do vento. São princípios da força espiritual, do equilíbrio e do bem viver. Era o uso sustentável da terra e sua territorialidade. Talvez aquilo que as Nações Unidas chamam de economia verde. Para nós, sempre, terra é vida.
Em todos os tribunais, quando se analisa uma demanda seja por conta de uma mulher faminta que furtou um pacote de leite, ou alguém que se apropriou de milhões de alguma estatal, sempre existem acusador, defensor e um réu ou vítima circunstancial, além de testemunhas a favor e contra. No caso do marco temporal, não.
Se temos no Brasil mais de 300 sociedades indígenas e o correspondente em línguas faladas, mas, alertamos, nunca em todas as demandas contra seus territórios ou investimentos, pudemos participar, falar ou pelo menos ser informados. O sistema jurídico não está acostumado com exercícios dessa natureza. E se, no passado, nossas aldeias não tinham o cacique, também não existe a forma de representação estimulada a partir do modelo sindical. Nenhum povo indígena representa o outro. É esse o exercício do chamado protagonismo indígena e essa sua forma de vida.
O fato é que, dentro de mais alguns dias, sob as penas das leis, será definido a partir de quando e até onde podemos chegar como povos indígenas, que num dia qualquer recebemos o primeiro presente do colonizador, a gripe. O marco temporal, tal como se apresenta, não exala confiança nos setores indígenas e não indígenas, que possa ser um modelo jurídico recomendável, mas há que buscar acertar, pois a crise está aí.
Sim, sempre fomos muito desconfiados. Não podemos esquecer que no passado, entre vírgulas e pontos e vírgulas, reduziram nossos territórios que eram de 100% para 14%, e sem direito a quaisquer indenizações. O marco temporal deveria constituir-se como parâmetro legal, moderno e eficiente para a busca de soluções econômicas e sociais, que levasse em conta a ancestralidade e os novos tempos para a paz e a afirmação de um país soberano, afinal os grandes mananciais de recursos naturais e minerais encontram-se também nos territórios indígenas.
MARCOS TERENA, articulador dos direitos indígenas da tradição Xumono do Pantanal
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