"As pessoas estão morrendo no mar e ninguém se importa com elas. Por que não abrimos as portas para receber famílias fugindo da morte inevitável em seus países e arriscando suas vidas na busca por estabilidade e segurança para suas famílias? Não são pessoas ruins. Apenas foram condenadas pelo destino a fugirem de seus países." O apelo foi feito por Abdullah Kurdi, em entrevista ao Correio, publicada em 4 de janeiro de 2022. Abdullah passou pelo próprio inferno. Duas vezes. Viu a esposa e os dois filhos serem engolidos pelas águas do Mar Mediterrâneo, depois que o bote em que estavam virou, em 2 de setembro de 2015. Viu o corpinho inerte de Alan, 2 anos, jogado numa praia de Bodrum, na Turquia, depois de ser devolvido pelo mesmo mar que matou o menino. Camiseta vermelha, bermuda azul, tênis e um tanto de sonhos varridos para sempre pelas ondas. Sonhos de milhares de outros migrantes também sepultados pelo Mediterrâneo.
Escrevo este artigo no Dia Mundial do Refugiado. Este texto é uma homenagem a Abdullah, a Alan e à tia do menino, Fatima Kurdi, que algumas vezes chorou enquanto eu a entrevistava. Mas também a tantas mães e pais que tiveram seus filhos arrancados deste mundo ao serem levados a uma jornada rumo a uma vida melhor. Morreram afogados, vítimas da falta de escrúpulos de atravessadores, contrabandistas de seres humanos que sentem desprezo pelo próximo e idolatram o dinheiro. No momento em que escrevo este artigo, é provável que famílias iniciem a travessia incerta do mar, depois de gastarem as economias de uma vida inteira em um sonho que, vez ou outra, termina em pesadelo.
As tragédias no Mediterrâneo ganham contornos mais dantescos ante a omissão deplorável das nações europeias. Como Pilatos, governos lavam as mãos ante as mortes e preferem culpar, única e exclusivamente, os contrabandistas. Ignoram o fato de que suas políticas migratórias são excludentes — em vez de acolherem os estrangeiros ilegais e processarem rapidamente as solicitações de asilo, elas os marginalizam e os abandonam à própria sorte.
Uma ativista grega com quem conversei após a tragédia de 14 de junho, na costa do Peloponeso, em um dos pontos mais profundos do Mediterrâneo, contou que a Guarda Costeira da Grécia estaria interceptando as embarcações com migrantes e impedindo-as de ancorarem nos portos. Mais de 500 pessoas podem ter morrido no naufrágio do barco Pylos, um dos piores que se tem registro envolvendo migrantes.
A esperança deveria ser um direito sagrado para todo o ser humano. Assim como a paz, a dignidade e a chance de prosperidade econômica — elementos cruciais para evitar que um cidadão abandone sua terra em busca de uma vida melhor. Devemos isso a Alan Kurdi, a Abdullah e às milhares de vítimas de um sonho perigoso e arriscado.
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