Em 1987, o professor Gilberto Dupas estudava a transição espanhola do regime franquista para a democracia plena e, entusiasmado com o que vira naquele país, resolveu organizar um livro com artigos de sociólogos, historiadores, políticos e economistas, para dissecar a jornada.
A obra A transição que deu certo (Trajetória Cultural, 1989) foi o resultado do desafio que se impôs Dupas. Adolfo Suárez, ex-presidente daquele país, prefaciou o trabalho, enquanto o então senador Fernando Henrique Cardoso o apresentava.
Impossível não fazer comparações entre os processos desencadeados pela Espanha e pelo Brasil. Esses países viviam a consolidação do regime democrático após períodos de governos militares e tateavam na busca do melhor caminho para o atingimento da estabilidade política geradora de todas as outras estabilidades.
Suárez relatou que a transição espanhola foi um projeto político com claro e manifesto objetivo de instaurar na Espanha uma democracia constitucional pluralista. Dividida entre dois grupos antagônicos: os que desejavam a continuidade do regime anterior e os que tentavam anular tudo o que existia e começar do zero, o país sabia ser impossível um resultado satisfatório diante do maniqueísmo que se forjara.
Ao fim, por competência e humildade política de seus próceres, os extremos foram vencidos e construiu-se uma programação em três fases que incluía uma reforma política, um compromisso constitucional e uma política de consenso.
Na reforma política, os espanhóis assumiram a sua história pretérita, com os erros e os acertos, comprometendo-se a não buscar responsáveis, nem se refugiar em interpretações que proclamavam o armagedon entre o bem e o mal. Suárez destacou que a democracia na Espanha foi possível, porque antes eles tornaram possível a liberdade e, com a liberdade, o acordo entre grupos políticos. Quanto ao compromisso constitucional, o arranjo foi consequência de um entendimento geral e amplificado, resultando, portanto, em uma Carta redigida e firmada a muitas mãos.
Por fim, a política de consenso precisou superar não só as desavenças ideológicas, mas também o fosso econômico que separava ricos e pobres, guardando equilíbrio entre a pressão social, as exigências da mudança política e a própria responsabilidade por governar.
O Pacto de Moncloa, firmado em junho de 1977, foi uma construção política coordenada pelo próprio Adolfo Suárez, que permitiu a partidos, antes visceralmente contrários, tomarem assento em torno de mesas de negociação e deliberarem responsavelmente sobre o desafio de tornar a Espanha viável após a morte de Franco.
Já Fernando Henrique Cardoso, em seus comentários sobre a obra, destacou que as dificuldades espanholas para a transição foram muito maiores que as brasileiras. O êxito foi resultado da elevada capacidade das lideranças inovadoras em encontrar soluções onde antes apenas divergências persistiam.
A caminhada não foi sem sobressalto. Mudanças políticas bruscas foram necessárias. A desilusão algumas vezes tomou conta das pessoas. Atos de sublevação militar foram contidos e punidos. Acordos internacionais assegurados. E a monarquia, incialmente contestada, teve no rei Juan Carlos ator maior de sua legitimação.
Quarenta anos depois, mesmo diante dos desafios que o século 21 incorporou à dinâmica política, militar, econômica e psicossocial da Europa, a Espanha continua sendo uma referência de país estável. Para o Brasil de agora, o maior exemplo do processo vivido pelos espanhóis é a política de consenso.
Franquistas, comunistas, socialistas, liberais, conservadores, militares e religiosos, juntos, pavimentaram a estrada para o futuro. De Castela nasce a esperança à Terra Brasilis. É imperativo combater a irracionalidade criada por agrupações fdalgais antolhadas.
O nós contra eles defendido no radicalismo dos grupos radicais suga a energia necessária de que o país precisa para atravessar a borrasca e alcançar o porto do bem-estar e paz sociais.
Não tivemos um Pacto de Moncloa claramente firmado, mas avançamos bem com nossos acordos após o governo militar. Entretanto, nos últimos anos, parece que voltamos à linha de partida como se a nossa transição tivesse sido inconclusa.
Um Suárez, um González, um Juan também podem emergir nestes tempos sectários de nossa política. Seriam novos gestores portadores de novas ideias.
Enquanto eles não se estabelecem, a sociedade em geral precisa olvidar as desavenças, os revanchismos e os interesses funestos na hora de discutir o futuro do país.
OTÁVIO SANTANA DO REGO BARROS, general de Divisão da Reserva, foi chefe do Centro de Comunicação Social do Exército
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