Recentemente adaptado como uma série de TV de grande sucesso, o videogame 'The Last of Us' (Os últimos de nós) retrata as consequências devastadoras de uma infecção fúngica, que transforma seres humanos em criaturas violentas e hostis. Ambos são obras de ficção científica, que, apesar de simular um futuro improvável, tem o mérito de nos alertar para o desafio representado por fungos patogênicos que podem colocar a saúde humana e a segurança alimentar em grande risco.
Os fungos podem se tornar patógenos difíceis de controlar devido à sua capacidade de adaptação, produção de enzimas e toxinas, resistência a medicamentos, disseminação por esporos e preferência por hospedeiros com proteção enfraquecida ou comprometida. Esses fatores contribuem para a sua capacidade de infectar e causar danos em humanos, animais e plantas, tornando necessário adotar medidas de antecipação, prevenção, diagnóstico e tratamento.
O foco em combater a pandemia de covid-19 desviou a atenção dos esforços de saúde pública em relação a outras doenças, incluindo infecções fúngicas. Um fungo resistente a medicamentos e potencialmente mortal, chamado Candida auris, está se espalhando rapidamente em instalações de saúde dos EUA, segundo o seu Centro de Controle e Prevenção de Doenças. Infecções semelhantes têm ocorrido em todo o mundo, inclusive no Brasil, muitas vezes com alta mortalidade associada.
O tratamento de infecções fúngicas é desafiador devido à semelhança entre as células desses organismos e as humanas. Tanto fungos quanto humanos possuem células com núcleos e estrutura complexa. Isso torna difícil desenvolver medicamentos antifúngicos que sejam eficazes contra os fungos, sem causar danos às células humanas. Além disso, fungos se multiplicam de forma massiva e são hábeis em desenvolver resistência aos medicamentos.
O melhor alerta para o perigo que fungos representam para humanos e animais vem da devastação que causam no reino vegetal. Os vírus e as bactérias tendem a receber mais atenção como agentes de doenças humanas, mas os fungos são de longe os principais causadores de doenças em plantas. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), centenas de doenças fúngicas afetam os 168 cultivos mais importantes para a nutrição humana.
Artigo recente publicado pela revista científica Nature (617:31-34, 2023) mostra que, apesar do uso de fungicidas e do plantio de cultivares resistentes, os agricultores em todo o mundo perdem entre 10% e 23% de suas colheitas para doenças fúngicas a cada ano, além de mais 10%-20% após a colheita. Em uma lista de 137 pragas e patógenos de plantas, classificados de acordo com o impacto, doenças fúngicas dominam as primeiras seis posições, afetando as principais fontes de calorias no mundo — arroz, trigo, milho, soja e batata.
O preocupante é que práticas da agricultura moderna tendem a ampliar a adaptabilidade de fungos patogênicos. As monoculturas, que consistem em grandes áreas de cultivos geneticamente uniformes, oferecem condições ideais para a disseminação de fungos prolíficos e de rápida evolução. E o uso cada vez mais frequente de fungicidas que visam a um único processo celular dos fungos tem levado ao rápido surgimento de resistência a esses defensivos das lavouras.
Já se sabe que as mudanças climáticas têm um impacto significativo no agravamento das doenças fúngicas. O aumento das temperaturas pode mudar a evolução, a distribuição e o movimento desses organismos. Estudos mostram que, desde a década de 1990, os patógenos fúngicos têm se deslocado em direção aos polos a uma taxa de aproximadamente 7km por ano. A ferrugem do trigo — doença agressiva que normalmente ocorre nos trópicos — pode ser detectada na Irlanda e na Inglaterra.
Muitos cientistas temem que o aumento das temperaturas poderá afetar as interações entre as plantas e fungos até agora inofensivos, que vivem nos caules, folhas, raízes e no solo. Estudos com a planta modelo Arabidopsis indicam que há riscos de que esses organismos se tornem patogênicos à medida que as plantas mudam suas fisiologias em resposta a estresses ambientais. Como tendem a tolerar temperaturas mais elevadas, fungos do solo podem também ganhar acesso a hospedeiros vivos, se tornando patogênicos para plantas, animais e seres humanos.
É provável que a grande maioria das pessoas nunca se preocupe com os fungos, ou se lembre deles apenas quando depara com mofo no queijo ou no pão, com bolor em algum canto do armário ou com cogumelos que brotem no gramado ou em troncos de árvores quando chove. No entanto, esse é um vasto grupo de organismos vivos, com cerca de 6 milhões de espécies conhecidas, que encerram enorme complexidade e habilidades, muitas úteis a nós, como fermentação para produção de alimentos e medicamentos, decomposição e reciclagem de resíduos, controle biológico de pragas, entre muitas outras.
Ainda assim, precisamos estar atentos à ameaça à saúde humana e à segurança alimentar representada por esses organismos, em especial frente à mudança climática, que vem se acelerando. É preciso que se amplie o entendimento de que fungos são também agentes devastadores de doenças. A falta de compreensão adequada desses patógenos e de estratégias para o seu controle pode ter consequências graves, tanto para a saúde humana quanto para a segurança alimentar no futuro.
MAURÍCIO ANTÔNIO LOPES - Pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)