Somos bombardeados cotidianamente por notícias que, para além das suas particularidades e complexidades, sinalizam para a emergência de uma educação voltada para as mídias digitais. Cyberbullying, pedofilia, cancelamentos, nudes vazados, fake news, deep fakes, linchamentos virtuais, discursos de ódio, incitação à violência em plataformas de jogos que reverberam em ataques nas escolas… Enfim, a comunicação mediada pelas tecnologias da informação e comunicação (TICs) vem impondo uma série de desafios e, sem dúvida, a questão acerca da leitura da mídia se coloca como central.
Notadamente, a disseminação de conteúdos nas plataformas — que se manifestam em diferentes linguagens e produtos culturais — vem exigindo habilidades e competências específicas para colher aqui e ali informações dispersas. O letramento transmídia se inscreve nesse cenário, como um processo de aprendizado em que o público — envolvido em lógicas colaborativas — ocupa posição de consumidor e criador de conteúdos multimodais em uma rede de informações que se tece transmídia. Os(as) adolescentes se tornam protagonistas em seus processos de aprendizagem, adquirindo habilidades e competências específicas por meio de estratégias e modelos bem diferentes daqueles dos contextos formais de conhecimento.
Longe de demonizar os artefatos tecnológicos e de defender a supressão deles da sala de aula, parece emergente refletir sobre seus usos e apropriações nos cotidianos, para além dos espaços formais de ensino. Nesse sentido, algumas perguntas despontam como relevantes: quais habilidades e competências são desenvolvidas quando do uso dessas mídias? E mais, como essas competências, adquiridas nos cotidianos desses adolescentes, podem ser revertidas enquanto estratégias no ambiente formal do ensino ou, ainda, guiar programas de formação docente e mesmo de políticas públicas voltadas para a educação midiática?
Buscar respostas a essas perguntas indica colocar ao centro as práticas sociotécnicas cotidianamente cultivadas por esses jovens. Assim, observando que a ambiência digital vem propiciando a circulação de conteúdos transmidiáticos, exigindo dos usuários novas competências para lidar com os diversos hardwares, softwares e seus protocolos, reivindicando uma espécie de letramento que lhe é próprio e, reconhecendo que nem todos os jovens têm as mesmas capacidades — e mais, que os atores implicados nos espaços do ensino encontram-se em distintos estágios de letramento —, identificá-las torna-se premente a qualquer outra estratégia ou ação que se possa pensar frente ao desafio que a cultura digital tem imposto à interface comunicação e educação.
Nesse horizonte, mapear e analisar as competências transmídia desenvolvidas pelos estudantes frente aos usos das TICs abrem caminho para refletir e mesmo conceber estratégias pedagógicas mais consonantes com o perfil cognitivo desses adolescentes, bem como oferece subsídios para a formação de professores e desenvolvimento de políticas públicas.
O governo federal lançou, recentemente, uma consulta pública sobre educação midiática, abrindo a possibilidade de assinalar a perspectiva de que as políticas públicas voltadas para esse campo precisam emergir da realidade social dos sujeitos. Refletir sobre uma educação voltada para as mídias parece exigir discussões voltadas para o desenvolvimento do pensamento crítico que, para além do reconhecimento das fake news, capacite os jovens para uma educação voltada à prevenção de riscos na ambiência digital, reconhecendo aspectos ideológicos e éticos e, ainda, desenvolvendo a capacidade de gerir conteúdos e a própria imagem, por exemplo.
Embora, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a educação midiática seja apontada como uma das competências gerais a serem trabalhadas no ambiente escolar, ressalta-se que é preciso pensar a educação para as mídias não como uma unidade curricular, mas como estratégias e conteúdos diversos que atravessam disciplinas, séries, conteúdos específicos e todas as demais atividades extracurriculares promovidas pelas escolas e nas escolas, dando protagonismo a esses adolescentes e relevância aos seus saberes e práticas colaborativas. O letramento transmídia pode, então, incentivar a criatividade e a inovação dos adolescentes, permitindo que explorem diferentes mídias para expressar as ideias e modos de ver e ler o mundo.
*CARINA FLEXOR, professora da Universidade de Brasília (UnB), é pesquisadora do projeto Letramento Transmídia, Práticas Comunicacionais e as Realidades Brasileiras
*VITOR BRAGA, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), é pesquisador do projeto Letramento Transmídia, Práticas Comunicacionais e as Realidades Brasileiras