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Artigo: Dom Quixote: lições a quem governa

Sancho Pança foi austero com os bens públicos, justo com seus servos, severo com os criminosos, benevolente com os ajustados, hábil diante das armadilhas da corte, afastado de mexericos de lambe-botas

Há muitas e belas passagens sobre a cavalaria medieval na icônica história do fidalgo Dom Quixote De La Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança. Escrita por Miguel de Cervantes Saavedra, no início do século 17, a epopeia tornou famoso o coletor de impostos que, anos antes, adquirira experiência de combate ao alistar-se sob a bandeira da Itália, participando na batalha naval de Lepanto. Na refrega contra os turcos, o autor foi gravemente ferido. As experiências vivenciadas nesse período o estimularam a duelar com sua pena e tratar da nobreza, seus heróis, suas damas.

A loucura do personagem principal se somou à ingenuidade de seu cavalariço para viverem aventuras fugidias da realidade e nos trazerem, paradoxalmente, senso de realidade, ética e moral no viver dos homens, respeito à tradição e aos valores herdados dos antepassados, a uma sociedade carente desses atributos em nossos tempos. Uma das mais saborosas passagens contadas no romance merece ser resgatada. Trata-se dos conselhos ministrados pelo fidalgo ao seu servo que iria assumir-se como governante de uma ilha fictícia. Uma brincadeira conduzida pelo duque e duquesa (a obra não os nomina), aproveitando-se da pureza de alma da estranha dupla, leva os protagonistas a acreditarem que o serviçal havia sido contemplado com um quinhão de terra para, como desejado, governá-lo.

Consciente da responsabilidade que é conduzir almas e imbuído da convicção de que ao nobre cabia orientar o súdito, ofereceu-lhe Dom Quixote a Sancho Pança dois tipos de conselhos: os que adornariam a alma e os que adornariam o corpo. Dos que tratavam da alma, ilumino os atemporais e afetos a qualquer governante: — Deves voltar os olhos para quem és, procurando conhecer a ti mesmo, que é o conhecimento mais difícil que se pode imaginar. — Nunca te guies por teus caprichos, coisa muita aceita entre os ignorantes que se acham perspicazes. — Quando acontecer de julgares o pleito de alguminimigo, afasta teu pensamento da ofensa que sofreste e ajusta-o na verdade do caso. — Procura descobrir a verdade tanto entre as promessas e os presentes do rico como entre os soluços e a súplica do pobre.

Dos que tratavam do corpo, ilumino os que cabem a qualquer pessoa em qualquer lugar: — Anda devagar e fala com calma, mas não de maneira que pareça que escutas a ti mesmo, que toda afetação é má. — Cuida-te, Sancho, para não comeres esganadamente, nem eructares (arrotar) diante de ninguém. — Também não deves misturar em tuas conversas, Sancho, aquela multidão de ditados que costumas usar, porque, apesar de os ditados serem sentenças breves, muitas vezes tu os encaixas a ferro e fogo, tanto que mais parecem disparates que sentenças. — Quando montares a cavalo, não vás com o corpo jogado sobre o arção traseiro nem leves as pernas tesas e espichadas, nem tampouco vás tão frouxo que pareças que vais em teu burro. Porque andar a cavalo torna uns cavaleiros, outros cavalariças.

O Cavaleiro da Triste Figura disse-lhe ao seu vassalo muitos outros conselhos, na esperança de ajudá-lo a exercer as nobres funções de governante sobre o povo que lhe coube da fantasiosa ilha. Naquele tempo, legislar, executar e julgar eram ações de uma única pessoa: o soberano. Tornava-se imprescindível, pois, que essa figura coroada fosse escrava tão somente de virtudes e que o poder não lhe tomasse a cabeça, induzindo-o à arbitrariedade como norma do decidir.

Sancho Pança foi austero com os bens públicos, justo com seus servos, severo com os criminosos, benevolente com os ajustados, hábil diante das armadilhas da corte, afastado de mexericos de lambe-botas, equilibrado na distribuição das riquezas e firme na coleta dos impostos. Não usou o poder que lhe foi oferecido pelo Duque, ainda que tudo não passasse de um chiste, em benefício pessoal. E tão logo percebeu a sua inadequação para conduzir seus súditos, abdicou de tudo, poder e riqueza, para pronto retornar ao seu amor, Joana de Pança, que o esperava saudosa numa aldeia do campo de Montiel.

Uma fascinante ficção plena de realidade. Deixa-nos exemplos da maneira correta como devem se conduzir governantes diante de governados, em missão tão nobre de dar-se antes que receber-se, de oferecer antes que pedir, de dividir antes que acumular. Quando gestores públicos se mostram embaraçados para conduzirem suas ilhas, ganhas agora pelo favor do voto, não custa oferecer-lhes um conselho: vais ao fidalgo que louco não era.

*OTÁVIO SANTANA DO REGO BARROS, general de Divisão da Reserva, foi chefe do Centro de Comunicação Social do Exército

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