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Artigo: A arte brasileira no lixo

"No ano passado, os norte-americanos jogaram no lixo 51 milhões de toneladas de embalagens, garrafas e sacolas"

Reaproveitamento de material despertou a curiosidade na COP28 -  (crédito: Mariana Lins/CB/D.A Press)
Reaproveitamento de material despertou a curiosidade na COP28 - (crédito: Mariana Lins/CB/D.A Press)
Jorge Antunes
postado em 10/06/2023 06:00

Em 7 de maio passado, um domingo, quem passava de manhã pelas ruas de New Paltz, cidade no condado de Ulster, Nova York, assistiu a uma cena muito comum: um senhor de cabelos compridos, calças jeans meio surradas e um casaco se aproximou de uma caçamba de lixo com algumas pastas volumosas. O sujeito, que aparentava uns 68 anos de idade, talvez 70, despejou todo aquele seu lixo na caçamba. Deveria ser uma ação natural, cotidiana.

No ano passado, os norte-americanos jogaram no lixo 51 milhões de toneladas de embalagens, garrafas e sacolas. Pouco é reciclado. Cerca de 95% do lixo plástico ianque acaba em aterros sanitários e nos oceanos.

Na terra do lixo, naquele país que exporta tanto lixo cultural — que por sinal absorvemos — é muito comum velhos aposentados e viúvos dedicarem seu tempo livre para, diariamente, dar um passeio de casa à caçamba de lixo e desta à sua casa. É salutar. É um passeio.

Mas algo de estranho havia na ação daquele senhor de cabelos compridos e calças surradas: havia uma certa circunspeção, talvez um titubeio. Mas, enfim, o lixo foi para o lixo. Quem era aquele senhor? Gente! Pasme! Era o Gerald Thomas, o autor e diretor teatral de fama internacional. E aquele lixo? O que era? Garrafas? Restos de alimentos? Embalagens plásticas? Não! Eram fotografias históricas, cartas de Samuel Becket, maquetes de peças teatrais de Heiner Mueller, rascunhos de parcerias com Philip Glass e outras preciosidades.

Era um protesto? Não. Era o desespero e a solução por não ter lugar para guardar tanta papelada, tantas maquetes, tantas fotos de espetáculos por ele dirigidos. O vasto material estava guardado em um depósito da cidade, ocupando duas salas. Mas o preço, nos Estados Unidos, das storage units, são bem altos e é preciso destinar uma pequena fortuna para uma storage de longa duração, de anos, décadas. Para quem passa por crise financeira e é despejado de apartamento em Nova York por não poder pagar o aluguel, é impossível alugar espaço para armazenamento de tantos objetos, documentos, quadros, maquetes.

Gerald tentou vender o rico acervo a algumas instituições brasileiras. Não conseguiu. Depois, às mesmas instituições, ofereceu o acervo de graça, como doação. Todas aceitaram e pediram que fosse enviado o material. Mas como um pobre mortal, pessoa física, pode pagar o envio de uma tonelada de peças que, evidentemente, enfrentariam a burocracia da alfândega brasileira? Os históricos videoteipes, fotos, programas, cartas, partituras, de parcerias de Gerald Thomas com Philip Glass e Gal Costa enriqueceriam o acervo do CIRMuB.

A frase anterior, em que mencionei a sigla CIRMuB, certamente intriga o leitor deste texto. O problema da memória musical brasileira me atormenta há exatos 54 anos. Em 1969, quando eu vivia em Buenos Aires, ouvi as lamentações da pianista Helena Lorenzo Fernandez, então adida cultural na Embaixada do Brasil na Argentina. Ela falava sobre o descaso do Estado brasileiro com a memória das artes e dos artistas brasileiros. Salientava o fato de a obra e o acervo de Lorenzo Fernandez permanecerem em gavetas e baús da família do compositor. Apenas em 2020 esse problema foi parcialmente sanado: a neta e os bisnetos do compositor reuniram esforços e construíram um site na internet disponibilizando as obras e o rico acervo do maestro. Mas o material físico, originais e manuscritos, continua com a família.

Então, aqui cabe a pergunta que não quer calar. Onde estão os acervos de Bid da Flauta, Avena de Castro, Francisco Mignone, Jacob do Bandolim, Guerra-Peixe, Conrado Silva, Emilio Terraza, Almeida Prado, Edino Krieger, Ari Barroso, Pixinguinha, Renato Russo, Camargo Guarnieri, Dorival Caymmi, Osvaldo Lacerda e tantos outros? A resposta é triste: tudo espalhado pelo Brasil. A maioria de peças e manuscritos continua com as respectivas famílias. Algum material foi doado ao CDMC de São Paulo e a outras instituições nos diversos cantos do país.

Em 1996, encaminhei ao secretário de Cultura do governo Cristovam Buarque projeto que elaborei pretendendo resolver o problema: o CIRMuB (Centro Internacional de Referência da Música Brasileira). A pretensão era criar o órgão de referência, com importante equipe de especialistas, musicólogos, editores, engenheiros de som, arquivistas, biblioteconomistas, museólogos. O CIRMuB, além de receber doações de acervos, estaria sempre provido de recursos para evitar momentos tristes, como aquele que já vivi algumas vezes: encontrar, nas prateleiras de um sebo, partitura, livro ou vinil com dedicatória do autor famoso, parte de rico acervo cultural que fora vendido por quilo por algum herdeiro do artista morto.

O projeto do CIRMuB perdeu-se e foi esquecido ou comido pelos ratos dos porões do Palácio do Buriti. Insisti em anos seguintes, com os governos de 2008, de 2012 e de 2016. Desisti. Mas fica a esperança de que possamos, futuramente, contar com novos governos mais preocupados com a nação brasileira e com a identidade de seu povo. Lanço aqui o alerta: aqui em Brasília e alhures, por estes brasis, existem muitos outros sujeitos de cabelos compridos, calças jeans meio surradas, aparentando uns 68 anos de idade, ou 78, ou talvez 90, pretendendo despejar, nas caçambas de lixo, ricos acervos culturais que não encontram espaço físico para serem guardados.

*JORGE ANTUNES - Maestro, compositor, membro da Academia Brasileira de Música

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