Um dado cívico-institucional elementar em qualquer país, sob qualquer regime, é o de que sua capital não é uma cidade como as outras. É diferenciada. Nesses termos, recebe (precisa receber) tratamento diferenciado: político, fiscal, orçamentário. Não se trata de privilégio, mas decorrência óbvia de sua responsabilidade de sediar a estrutura do Estado — os Três Poderes da República e os órgãos das administrações direta e indireta — além do corpo diplomático e da caríssima estrutura de segurança (militar, policial e de inteligência) que tudo isso impõe.
A capital, aqui e em qualquer parte, não vive apenas para si. Arca com despesas que estão bem além das demandas e do alcance de seus contribuintes, cujos impostos são insuficientes para bancar um ônus que é de ordem geral. A capital, afinal, serve a todos. Não é cidade, não é estado, não é território: é distrito. E é federal, ou seja, serve à nação, ao conjunto dos demais entes federados.
Por essa razão, desde sua origem, Brasília recebe parte de seus recursos orçamentários do governo federal. Com eles, custeia Polícia Civil, Polícia Penal, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros, além de prover assistência financeira para execução de serviços públicos de saúde e educação. Esses recursos, provenientes do Fundo Constitucional do DF, constituem a principal fonte de arrecadação do Governo do Distrito Federal — mais de 40% de seu orçamento.
Pois bem, de repente, não mais que de repente, no bojo da votação do arcabouço fiscal semana passada e sem que tal mudança proviesse da proposta original do governo federal, o deputado relator da matéria, Cláudio Cajado (PP-BA), mudou o cálculo de reajuste do fundo, que acabou aprovado sem maiores debates pela Câmara dos Deputados.
A alteração abala profundamente a situação orçamentária de Brasília, ameaçando sua estabilidade fiscal e administrativa. Diminui pela metade o crescimento percentual médio que o fundo teve nos últimos 21 anos. Desde 2003, quando entrou em vigor, o aporte ao fundo é corrigido pela variação da Receita Corrente Líquida (RCL) da União.
O projeto aprovado muda esse critério. Estabelece que a correção seja feita pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Isso reduz a correção pela metade. Pela RCL, a correção, em média, é de 10,71%; pelo IPCA, passa a ser de 5,76%. A projeção é de que isso imporá uma perda, em 10 anos (ou seja, até 2033), de nada menos que R$ 87,8 bilhões.
A proposta vai agora ao Senado, onde se espera que o equívoco seja reparado. Como o Fundo Constitucional não era a questão central da matéria em debate — o arcabouço fiscal —, sua relevância não foi percebida por uma parcela significativa dos que votaram, que seguramente não querem comprometer a estrutura financeira, administrativa e de segurança da capital do Brasil. E é isso que está agora em pauta.
Quando deputado-constituinte, em 1987-88, fui um dos responsáveis pela aprovação do inciso XIV ao artigo 21 da Constituição, que atribui à União a competência de prover segurança, educação e saúde ao Distrito Federal. Esse inciso foi regulamentado pela Lei 10.633/2002, que entrou em vigor em 2003, garantindo o aporte orçamentário ao DF corrigido anualmente pela RCL.
O Senado, que é a Casa da Federação — e durante muitos anos foi a casa legislativa de Brasília — é a instância mais adequada para que esse debate se aprofunde e dê ciência à Câmara, para onde a matéria vai voltar, se alterada, da relevância dessa questão. Ainda hoje, 63 anos após a inauguração de Brasília, há quem não tenha percebido a importância da transferência da capital para o centro do país e dos benefícios daí advindos.
Brasília não foi apenas um sonho de JK. José Bonifácio, Patriarca da Independência, defendia essa necessidade. Brasília interiorizou o desenvolvimento nacional e permitiu que o país tomasse posse de si mesmo. Parte, porém, da opinião pública tende a confundir o desgaste circunstancial da política — responsabilidade da sociedade como um todo — com a capital que a sedia. E há ainda os que querem Brasília metrópole econômico- financeira, provendo-se a si própria como qualquer outra cidade. Sua missão é outra: é a de ser a cabine de comando político do país. Nesses termos, o ônus do Fundo Constitucional é insignificante diante do bônus da missão institucional que propicia a todos.
* VALMIR CAMPELO, membro emérito do Tribunal de Contas da União (TCU), foi deputado constituinte e senador por Brasília