O Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) manteve na semana anterior, em Nova York, debate sobre a proteção de civis em conflitos armados, com foco nas consequências das guerras para a insegurança alimentar. Ao longo de 150 anos de desenvolvimento do direito humanitário, as respostas da comunidade internacional a esse desafio continuam a revelar-se insuficientes diante da atual proliferação de conflitos em diferentes partes do mundo. Ainda que se costume ressaltar apenas os casos de maior visibilidade ou de peso geopolítico, como a guerra na Ucrânia e o recente conflito interno no Sudão, os números são alarmantes: estima-se em mais de 100, neste exato momento, os conflitos, de diferentes graus de intensidade, no mundo.
Esse enfoque seletivo distorce percepções sobre os retrocessos que atingem a humanidade em matéria de paz e de segurança. De acordo com a ONU, 2 bilhões de pessoas são afetadas, direta ou indiretamente, por esses confrontos. O mundo experimenta hoje o maior número de conflitos violentos simultâneos desde a II Guerra Mundial, dado eloquente da crise global silenciosa que a maioria ignora. Alguns dos conflitos esquecidos ocorrem no nosso próprio hemisfério, como é o caso atual do Haiti, e requerem da comunidade internacional ações que não podem demorar. Dessas respostas dependem a sobrevivência, a segurança e o bem-estar de 1/4 da população mundial.
Nesse contexto, a atuação da ONU na proteção de civis em conflitos armados assume importância ainda mais crítica, como tive a oportunidade de lembrar no debate aberto do Conselho de Segurança. E a segurança alimentar está, sem dúvida, entre as dimensões mais sensíveis e mais trágicas dessa proliferação de conflitos independentemente da intensidade de cada um deles. Basta lembrar que 70% da população que sofre de insegurança alimentar aguda encontra-se em zonas conflagradas.
Como um dos maiores fornecedores de alimentos do mundo, o Brasil tem compromisso com o enfrentamento da insegurança alimentar nacional e internacionalmente. Por essa razão, assumiu a responsabilidade, em parceria com a Suíça, no atual mandato como membro não permanente do CSNU, pela condução dos debates sobre o impacto desses conflitos na segurança alimentar. É crucial reconhecer que apenas esforços negociadores que visem soluções políticas duradouras serão capazes de prevenir o agravamento da tragédia humanitária que o mundo experimenta hoje. Essa é a conclusão do relatório do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, que, no debate do CSNU na semana anterior, afirmou inequivocamente: "guerra é fome".
Não há, entretanto, respostas simples para o problema da insegurança alimentar de países afetados por conflitos: a doação pura e simples de alimentos, como demonstram inúmeros casos ao longo dos anos, tende a resultar, como efeito colateral indesejável, em desestímulo à produção local da agricultura familiar e na desorganização de relações socioeconômicas vinculadas a esse modelo. O êxodo de famílias de agricultores é outro efeito nefasto e de difícil reversão.
Felizmente, a diplomacia nos indica alguns caminhos: o acordo para assegurar a manutenção do fluxo de exportação de grãos da Ucrânia, celebrado no ano passado e renovado este ano, teve efeitos sistêmicos positivos no mercado global, com impacto nos preços e benefícios diretos para os países mais pobres que dependem da importação de alimentos. A abertura de novos corredores humanitários na Síria e a trégua no Iêmen, sob supervisão da ONU, são outros dois casos recentes que apontam para a necessidade de mais diplomacia — e não o contrário.
As dificuldades dos países em desenvolvimento para construir sistemas agroalimentares sustentáveis e participar plenamente nos mercados internacionais são resultados da guerra, mas também de medidas coercitivas unilaterais e do protecionismo.
Por essa razão, o papel ativo do Brasil, nesse e em outros debates prioritários no Conselho de Segurança, vem acompanhado pela defesa permanente, reiterada inúmeras vezes pelo presidente Lula, da urgente necessidade de reforma e de fortalecimento dos organismos internacionais, como a própria ONU, em particular seu Conselho de Segurança, e a Organização Mundial do Comércio. Precisamos de um multilateralismo renovado, mais democrático, que reflita as realidades do século 21, e não as de 1945. Diante dos dramas do presente, o imobilismo no âmbito multilateral não é uma opção.