Endividamento

Artigo: A revisão da taxa de juros do cartão de crédito é urgente

"A discussão sobre a definição de um limite da taxa de juros do crédito rotativo é necessária. Esta é a linha que possui a maior taxa no mercado"

O cartão de crédito é vilão no endividamento das famílias. São 134 milhões ativos no país, uma média de quatro cartões por pessoa. O segmento é marcado por ambiente concorrencial expressivo e cercado de inovações tecnológicas. Porém, o dinamismo na comercialização e expansão do produto de crédito não é observado em esforços para a redução da taxa de juros e orientação sobre lanejamento e condições de pagamento.

A discussão sobre a definição de um limite da taxa de juros do crédito rotativo é necessária. Esta é a linha que possui a maior taxa no mercado. De acordo com a pesquisa realizada pela CNC (Confederação Nacional do Comércio) em março de 2023, o endividamento atingiu 78,3% das famílias, que acumulam dívidas com atraso médio de sete meses, e o comprometimento de renda alcança 29,9%. O cartão de crédito foi indicado por 86,1% dos entrevistados como principal responsável pelo endividamento das famílias.

Em 2019, o Banco Central do Brasil analisou a diferença entre as taxas de juros praticadas em Brasil, Estados Unidos (EUA), Argentina, México, Colômbia, Chile, e Peru. Os juros no Brasil eram de 299,45% ao ano. O número é cinco vezes superior à taxa do segundo colocado, a Argentina, com 63,3%. Na ocasião, a inflação na Argentina era de 55,8%. No Brasil, de 4,9%. Hoje a inflação na Argentina é 102,5%, enquanto no Brasil é 5,79%. Hoje, no Brasil, a taxa de juros do cartão de crédito está 131,05 pontos porcentuais acima da de 2019.

A Lei do Superendividamento (14.181/2021) é implementada com lentidão. Há insuficiente acesso às informações sobre os riscos do crédito e educação financeira. As entidades envolvidas no processo de reestruturação das dívidas dos superendividados não organizaram acolhimento e interlocução com os credores. Há importantes lacunas para disciplinar a oferta e publicidade de crédito. Não há instrumentos de avaliação da aplicação da lei.

A taxa média de juros do cartão de crédito rotativo, em março de 2023, ficou em 474,74% ao ano. No caso do cartão de crédito parcelado, houve a maior taxa de juros dos últimos 10 anos: 204,35% ao ano. A taxa atual é quase o dobro da taxa média identificada no período entre 2013 e 2015, com média de 105,25% ao ano.

O cartão de crédito, assim como o cheque especial, desempenham papel de complemento de renda de muitas famílias. Cartão e cheque auxiliam o pagamento de despesas de consumo imediato, como alimentos e medicamentos. Esse mecanismo, atrelado a taxas de juros elevadas, dificulta o controle financeiro familiar e induz o consumidor a tomar mais crédito (para pagar juros dos cartões). Isso reduz o poder de compra dos consumidores, que dedicam os recursos para o pagamento de juros e são compelidos a precisar de crédito com mais frequência.

Um teto para o rotativo do cartão de crédito pode contribuir para a redução do endividamento. Isso ocorreu com o cheque especial, a partir das medidas adotadas pelo Banco Central em 2018 e 2019. As medidas sobre o cheque especial estabeleceram o teto em 8% ao mês ou 150% ao ano. A regra começou a valer em janeiro de 2020 e contribuiu para a redução significativa do endividamento das famílias a partir de então.

A redução da taxa de juros contribuiu, gradualmente, para a redução no saldo em concessão e inadimplência, que apresentou queda na participação em 2% para 1% do saldo total. O novo patamar de juros ainda é muito alto quando comparado ao de outros países. Porém, foi medida importante, reforçando a viabilidade de juros menores e contribuindo para a redução do endividamento das famílias.

O cartão de crédito é o maior responsável pelo descontrole financeiro e endividamento. No cálculo do Banco Central, o crédito rotativo responde por 48,2% da composição do indicador de inadimplência, seguido pelo saldo da modalidade Composição de Dívidas, com 16% da composição do índice. Esse segundo indicador mostra o resultado de operações de crédito renegociadas pelos bancos e sugere reincidência no atraso. Consequentemente, novos endividamentos do consumidor.

Muitas operações de renegociação são firmadas fora da capacidade de pagamento do tomador de crédito. É comum que, poucos meses após a realização de um acordo, haja nova mora de pagamento. Novas renegociações muitas vezes representam alongamento da dívida e maior exposição aos juros, tornando o endividamento ainda maior.

Juntos, a inadimplência do crédito rotativo (48,2%), parcelamento da fatura (9%), composição de dívidas (16%) e cheque especial (12,1%), totalizam 85,3% da composição da inadimplência. Ou seja, apenas quatro modalidades de crédito indicam esse enorme volume.

A complexidade que envolve a repactuação de dívidas com cartões de crédito, associada às elevadas taxas de juros, penalizam os consumidores de menor renda e capacidade de pagamento. O atraso no pagamento das faturas rapidamente se transforma em dívidas altas, muitas vezes impagáveis. Para driblar a situação, o comportamento mais frequente é a adesão a vários cartões de crédito. As famílias buscam novos limites e, assim, tentam equilibrar os pagamentos alternando saldo devedores de uma cartão para o outro, sempre com pagamentos parciais, que geram a incidência de juros por atraso, mas evitam o bloqueio do cartão. O parcelamento sem juros das compras reforça o ciclo vicioso do endividamento, pois reforça o padrão. Por todos esses motivos, seria muito bem-vinda a possibilidade de um teto para os juros de cartão no Brasil

*IONE AMORIM, economista e coordenadora do Programa de Serviços Financeiros do Idec

*MARIA PAULA BERTRAND, professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP

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