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Artigo: As big techs e a violência

"casos de violência nas escolas e de ameaças em universidades brasileiras são apenas mais um capítulo de uma situação na qual pessoas despudoradas espalham ódio e medo, celebrando a delinquência sob a indiferença das chamadas big techs"

JELSON OLIVEIRA - Professor no curso de Pós-Graduação em Ética, da Escola de Educação e Humanidades, e professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Há alguns anos, Umberto Eco fez uma declaração bastante conhecida, afirmando que a internet tinha dado voz aos imbecis. Desde então, o problema ficou muito mais complexo, de tal forma que não apenas os imbecis têm ganhado palco no mundo das redes sociais, mas sobretudo os criminosos. Os casos de violência nas escolas e de ameaças em universidades brasileiras são apenas mais um capítulo de uma situação na qual pessoas despudoradas espalham ódio e medo, celebrando a delinquência sob a indiferença das chamadas big techs, que hoje se resumem basicamente a quatro ou cinco grandes empresas de comunicação e tecnologia. O monopólio dessas empresas e o seu poder de influência sobre as nossas vidas é realmente impressionante: das pequenas às grandes decisões do nosso cotidiano, somos dependentes (eu diria, reféns) de sua onipresença vigilante e disciplinar.

Quando bilhões de pessoas ao redor do mundo dormem e levantam sob o narcótico de suas telas sedutoras. É difícil não reconhecer a necessidade de que um tal poder seja submetido a um controle extratecnológico, digo, a um controle ético, político e, sobretudo, legal. Todo poder exige responsabilidade, e não há nenhuma razão capaz de romper com essa regra básica da vida social - nem os pretensos benefícios que essas empresas possam trazer em termos do suposto progresso que elas traduzem. Por que, então, alguns resistem a exigir que essas empresas sejam responsabilizadas pelas publicações que veiculam? Por que elas continuam dando, impunemente, palco aos criminosos?

Esse tipo de crime, como se sabe, tem vários níveis e geralmente sua primeira expressão é despretensiosa: tudo começa com a divulgação de uma frase preconceituosa, uma imagem pejorativa, uma piada de mau gosto... Por trás, geralmente, uma pessoa ignorante e, não raro, de má-fé, que acredita na menoridade e na ingenuidade do mal que pratica. Nos últimos anos, o discurso de ódio e o orgulho em combater "pautas esquerdistas" ou de ser contra "pautas de minorias" se tornou indecorosa e, por isso mesmo, censurável. Tem gente que mostra a sua cara impudica, tem gente que se esconde no anonimato, tem gente que grita seus impropérios aos quatro ventos, tem gente que cria ou difunde fake news, tem gente que participa, e tem gente que organiza grupos para postagens desse tipo, tem gente que ameaça, acusa indevidamente, festeja a violência, tem gente que pega uma arma e entra em uma escola: todos fazem parte do mesmo sistema que corrompe a paz e a tranquilidade da vida social, que desrespeita os direitos humanos e faz da própria petulância uma arma contra os fundamentos da vida social.

Todas essas pessoas participam, em diferentes graus, de uma mesma histeria que é promovida pela sociedade que chama de democracia e de liberdade de expressão, um ato evidentemente repulsivo e perigoso. Todos chocam o ovo da serpente. Nem o verniz de "gente de bem" que entope suas narinas é suficiente para esconder suas imundícies. Por isso é preciso mais: é preciso impedir suas postagens (sim: limitar seu poder de expressão e difusão, porque nem tudo pode ser dito, quando o conteúdo da fala ofende, humilha e amedronta) e cortar seus nutrientes (o discurso abominável que azeita nossas relações cotidianas).

Depreciar, detratar e ameaçar não é e nunca foi um direito irrestrito de quem quer que seja. E é precisamente aí que entra o controle das big techs: é preciso criar instrumentos legais que, sem legitimar censuras indesculpáveis, sejam eficazes no combate às falas que induzem e promovem atitudes de ódio. O utopismo digital marcado pelo entusiasmo com essas ferramentas precisa chegar ao fim. Em seu lugar, como propôs Evgeny Morozov no seu big tech: a ascensão dos dados e a morte da política, é preciso lançar mão de uma "sobriedade digital" capaz de adequar as plataformas tecnológicas aos pressupostos éticos que a sociedade humana demorou séculos para forjar. Nenhum bloco poderoso pode estar acima de tais pressupostos, que são as cláusulas pétreas de nossa civilização.

Sem elas, como sugere o título supracitado, estaremos diante da morte da política, como arte do bem comum. O resultado, todos sabemos, é a barbárie, que nos faz a todos vítimas amedrontadas do ódio alheio e torna nossos adolescentes e jovens psicologicamente vulneráveis, reféns de ideologias extremistas que pululam nas telas à sua frente, sem restrições. Não podemos continuar submissos à vontade de alguns gurus bilionários que lucram com as nossas desgraças. Sem tecnofobia, a política e seus arrimos éticos, morais e legais, precisa assumir a tarefa que lhe é própria: proteger a sociedade da influência perniciosa da tecnologia e garantir que o seu poder seja utilizado para o bem comum.

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