NULL
questão indígena

Artigo: Marco temporal, a causa da paz

"Se o Estado entender como necessárias a ampliação ou criação de novas reservas, que o faça pagando pelas terras"

24/04/2019. Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia  - DF. Brasil. Acampamento Indigena na Esplanada dos Ministérios e Policia Militar. -  (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
24/04/2019. Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Brasil. Acampamento Indigena na Esplanada dos Ministérios e Policia Militar. - (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
Carlos Marun
postado em 23/05/2023 06:00 / atualizado em 24/05/2023 12:42

Há poucos dias foi celebrado o Dia do Índio e aproveito o ensejo para reafirmar a necessidade do imediato reconhecimento do Marco Temporal estabelecido na Constituição de 88 em relação à questão indígena. Não obstante reconheça que no correr dos séculos as nações indígenas foram em vários momentos vítimas de esbulhos, não há como não reconhecer também que os constituintes decidiram pôr fim a esses conflitos garantindo aos indígenas as terras que os índios "tradicionalmente ocupam". (Ou seja, ocupavam naquele momento). Se fosse diferente, os constituintes teriam estabelecido uma data anterior ou posterior para fazer valer esse direito. Estariam na Constituição coisas como "ocupavam em…" ou "puderem ocupar até…"

O ano de 1988 é o marco temporal. Isso está na Constituição Federal e tem que ser respeitado. Se de lá para cá algum indígena foi expulso de suas terras, ela lhe deve ser devolvida. E foi o que aconteceu na famosa Terra Indígena da Raposa Serra do Sol, em Roraima. Fora isso, e dali para a frente, a criação ou ampliação de reservas indígenas tem que acontecer com base em desapropriações justamente indenizadas e não mais com base em expropriações. Não mais como é hoje, quando, se uma camionete da Funai entra em uma fazenda nem que seja para pedir um copo d'água derruba imediatamente em 50% o valor da propriedade.

Os riscos da indefinição são enormes. Sem um marco temporal, não existe o direito líquido e certo. Em permanecendo o não reconhecimento desse marco, todas as propriedades do Brasil são precárias, já que em épocas passadas foram indígenas todas as terras do nosso país. Alguém aqui duvida que o Vale do Anhangabaú foi terra indígena? Alguém pensa que esse nome é holandês? E Jacarepaguá? E Paranoá? E Itaipú? Alguém já imaginou as consequências de o nosso ordenamento jurídico não estabelecer uma data a partir da qual fique claro que terras que foram indígenas não necessariamente continuam sendo. Só aquelas que estavam ocupadas por indígenas quando da promulgação da Constituição Federal.

É preciso que fique claro que o estabelecido na CF 88 foi uma conquista também para as nações indígenas. Foi ela que garantiu que hoje 13% do território nacional esteja ocupado por reservas legalmente estabelecidas. O problema não é o tamanho das terras indígenas. É sua utilização. Porém, o que muitos pretendem agora é o império da indefinição, que permitiria a ilegalidade. Ou seja, o esbulho de produtores rurais que foram chamados pelo Estado para tornarem brasileiras e produtivas grandes porções do território pátrio.

Esses homens e mulheres se estabeleceram há décadas ou séculos em territórios nos quais investem, trabalham, vivem… E alimentam boa parte de mundo. Não há como se exigir paz a eles se lhes é negado um direito que está posto na nossa Constituição.

Mato Grosso do Sul é o estado onde são mais agudos os conflitos. E, por consequência, maior o número de mortos. É lá que construí minha vida política. Após a Guerra do Paraguai, brasileiros de todas as querências foram chamados para ocupar as novas fronteiras e o território que como botim de guerra havia se tornado brasileiro. Cabe destacar que foi garantida também por Dom Pedro II uma reserva de 542 mil hectares para os indios kadiweus, por serviços prestados ao Império durante a guerra. Ela existe e nela vivem hoje cerca de 2 mil indígenas. Depois, em 1940, Vargas criou a Colônia Agrícola de Dourados na terra extremamente produtiva do sul do estado. Ali nasceu uma agricultura pujante e se consolidaram vários municípios. Cabe hoje simplesmente fingirmos que a história não existiu e expulsarmos de suas terras produtores que as possuem de fato e de direito?

Sim, concordo que em muitos locais do estado é dramática a situação dos indígenas, especialmente nas pequenas reservas situadas no entorno da hoje grande cidade de Dourados. E isso é um problema do Estado brasileiro. O Estado está fingindo que o problema é entre índios e produtores porque, na verdade, não quer investir recursos na questão. Será esbulhando proprietários que essa situação vai se resolver? Não. Isso na verdade se constituiria convite para a guerra.

Os constituintes de 88 entenderam isso e trabalharam pela paz. Estabeleceram esse marco com o objetivo de pacificar a questão, garantindo a índios, a produtores e até aos moradores das cidades o domínio das terras que ocupavam então. Espero que o nosso STF se atente ao texto da nossa Carta Magna e à vontade dos constituintes, e reconheça isso em julgamento pautado para ocorrer no próximo mês de junho. Chega de antropólogos estarem a percorrer fazendas em busca de vestígios de antigos cemitérios indígenas. Eles existem por todo o lado, afinal o Brasil já foi 100% indígena. Mas não é mais.

Se o Estado entender como necessárias a ampliação ou criação de novas reservas, que o faça pagando pelas terras. Sem isso não haverá paz nos campos e de tanto em tanto serão contados mortos nesse conflito que só existe por omissão do Poder Público.

 

* Carlos Marun — advogado e engenheiro, foi ministro de Estado

 

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

-->