CRISTOVAM BUARQUE — Professor emérito da Universidade de Brasília
Uma demonstração de nosso racismo institucional é o ensino de história esquecendo o papel dos negros e ignorando a riqueza da cultura africana na formação do Brasil. Esse é um racismo supremacista, mas há um racismo submisso que vem sendo imputado há séculos.
A reserva de vagas para ingresso na universidade tem uma finalidade positiva na luta contra o racismo, mas o debate visando reduzir exigências no conteúdo da disciplina de cálculo, nos cursos de engenharia, para diminuir a evasão de alunos cotistas tem um caráter negativo nessa luta, ao desviá-la para quebrar a desigualdade na educação de base.
As cotas são necessárias para ajudar a diminuir o racismo, mas não bastam e podem até agravar o racismo supremacista se não houver um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base. No lugar de lutar por isso, prefere-se compensar a desigualdade exigindo menos conhecimento de matemática para os "engenheiros cotistas".
Por falta de lutar para acabar com a divisão do sistema escolar entre escolas senzala para os filhos dos pobres, em geral afrodescendentes, e escolas casa grande para os filhos dos ricos, em geral eurodescendentes, essa opção termina fazendo com que o sistema universitário tenha universidades senzala e universidades casa grande para servir diferentemente aos alunos que vêm do sistema escolar dividido.
A luta imediata contra o racismo exige cotas que ajudem a mudar a cor da cara da elite brasileira dentro das universidades, como temos conseguido nos últimos anos. Mas basear-se nas cotas para alguns entrarem na universidade não acaba com o racismo se deixarmos para trás dezenas de milhões de analfabetos ou sem educação de base com qualidade.
A desigualdade na qualidade da educação de base é consequência do desprezo à educação e do acomodamento populista, unidos para enganar os pobres, afrodescendentes ou não. Prometemos diploma universitário, em vez de uma estratégia para implantar no Brasil um sistema de educação de base com a mesma qualidade, independentemente da renda, do endereço e da raça. Só essa igualdade eliminará o racismo supremacista e seu aliado, o racismo submisso.
Ao desprezar o direito de todos à educação de base com a mesma qualidade, tolera-se escola casa grande para quem pode pagar e escola senzala para os pobres, prometendo compensar as dificuldades que surgirão quando chegarem à universidade, mas sem quebrar o fundamento do racismo: a educação desigual na base.
A evasão escolar nos cursos de engenharia não vem da raça do aluno, vem da educação de básica deficiente dos pobres, quase todos negros, porque no Brasil a pobreza tem cor. Não é porque seus antepassados vieram da África, mas porque eles vieram de escolas ruins, sem qualidade no ensino de aritmética, álgebra, geometria e todas áreas do conhecimento, inclusive português.
A evasão não é decorrente da raça, mas da classe social que não permite receber uma boa educação de base. Porque, 135 anos depois da Abolição, o Brasil mantém seu sistema educacional dividido conforme a renda e o endereço do aluno. Reduzir exigências na disciplina de cálculo para engenheiros, depois na biologia para os médicos pode até aumentar o racismo, quando depois de formados seus beneficiários mostrarem menos preparo para as profissões do que os não cotistas.
O racismo institucional decorre sobretudo do rendismo educacional: toleramos que o filho do mais pobre — branco ou negro — estude em uma escola com menos qualidade que o filho do mais rico. Apesar disso, os movimentos antirracismo não fazem campanha pela erradicação do analfabetismo, mesmo sabendo que 80% dos adultos analfabetos são afrodescendentes; ainda menos lutam por um sistema único nacional público de educação de base, para ricos e pobres.
Um Brasil decente precisa hoje das cotas para ingresso na universidade, mas elas fracassarão como instrumento de luta contra o racismo se não vierem acompanhadas de uma estratégia para garantir educação de base com a mesma qualidade para todos. Sem as cotas, não enfrentamos o racismo, só com as cotas não acabamos com ele. Não basta levar alguns à casa grande universitária, é preciso acabar a senzala escolar.
O efeito da evasão de jovens estudantes de engenharia por falta de base em matemática é preocupante. E mais ainda é a evasão das crianças por falta de alfabetização na idade certa e falta de qualidade na escola.
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