Há quem diga que a indagação é impertinente. Outros acreditam ser muito adequada à atualidade. Ainda que estejamos em pleno século 21, o trabalho forçado, adornado de violência física, moral, psicológica, está no cotidiano nacional. Os capitães do mato, modernamente, chamados de “gatos”, aliciadores de pessoas pouco letradas, invisíveis às políticas de Estado, para a realização de trabalhos em condições subumanas. Detalhe: a maioria é negra, mas os indivíduos de pele branca também não escapam da sanha incontrolável dos cruéis.
Os dados dos órgãos de governo decepcionam os que imaginaram que as senzalas inexistem no Brasil moderno. Nos primeiros três meses deste ano, 918 pessoas foram resgatadas da condição de trabalho análoga à escravidão — 123% a mais do que em igual período de 2022. No ano passado, 2.575 pessoas foram libertadas de cenários degradantes, inadequados até para os seres irracionais.
Neste 13 de maio, quando a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, sob pressão econômica e política, completa 135 anos, o tacanho e desprezível comportamento de muitos empresários urbanos e rurais, ainda persiste, para elevação de seus lucros. Movidos pelo racismo sistêmico e estrutural, pela aporofobia (desprezo aos pobres) e pela ganância desmedida, eles, como no passado, sustentam suas riquezas na imensa plataforma de miséria existente no país. Em mais de um século, os direitos conquistados pelos negros foram pífios. A mais notória reparação foi o sistema de cotas, para garantir o acesso dos negroas ao ensino superior.
Agem como seus antepassados, que se tornaram “famílias tradicionais”, a partir da exploração violenta da mão de obra dos negros sequestrados em seus países de origem na África. Aqui, perderam a liberdade e ganharam uma vida de maus tratos e torturas. Perderam a condição de humanos e passaram a ser vistos como mercadorias.
Diferentemente do período escravagista, entre os séculos 16 e 19, hoje, os exploradores não são proprietários dos escravos. Mas as vítimas são submetidas a diversos tipos de violência física, psicológica, moral e outras pelos patrões, abusadores da integridade humana, cerceadores da liberdade de ir e vir dos empregados e infratores da legislação trabalhista vigente no país. Tudo muito igual ao período escravagista.
Se o regime de servidão violento inexistisse, o que justificaria a existência da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, do Grupo de Apoio ao Combate à Escravidão Contemporânea e Tráfico de Pessoas (Gacec-Trap), vinculado à Câmara Criminal do Ministério Público Federal, da Divisão para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), do Ministério da Fazenda, e do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)?
Talvez não faltem políticas públicas para conter a escravidão, mas há ausência de justiça para punir com rigor as práticas criminosas de trabalho forçado contemporâneas. A Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, alterou o artigo 149 do Código Penal, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo, e estabeleceu pena de 2 a 8 anos de prisão e multa aos que vilipendiam os trabalhadores. Os empregadores escravagistas, eventualmente, levados ao banco dos réus, conseguem apelar em liberdade e, ao fim e ao cabo, não conhecem a cela dos presídios. As multas aplicadas aos infratores, por maior que sejam os seus valores, não passam de gorjetas.
Entre os mais de 900 episódios deste ano, ganhou espaço na imprensa, por vários dias, a libertação de 207 pessoas nas renomadas vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, instaladas no município de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Os nobres empresários alegaram que não sabiam de nada, pois os trabalhadores eram terceirizados, por meio da empresa Fênix. Garantiram, por meio de nota, “ser contrários à exploração da mão de obra”. Multados em R$ 7 milhões, assinaram um Termo de Acordo de Conduta (TAC). É vida que segue.
Os trabalhadores resgatados denunciaram as péssimas condições dos alojamentos, a comida estragada que era servida, as cobranças abusivas, as agressões físicas, inclusive com choques elétricos e spray de pimenta, pelos capatazes da Fênix. Uma reedição atualizada das senzalas ou dos pelourinhos — pátios de tortura dos negros no período escravagista.
O empresário baiano Pedro Augusto Oliveira de Santana e dono da Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda., fornecedora da mão de obra aos viticultores de São Bento, nasceu no município de Valente, na Bahia. As apurações da polícia revelaram que ele tem vários clientes gaúchos. Dessa vez, Pedro Santana foi preso pela Polícia Federal e levado ao Sistema Penitenciário. Alguns dias depois pagou fiança de R$ 39.060 e foi liberado. Simples, assim.
Mas se pouco há para comemorar no 13 de maio, ainda cabe ao povo negro muito a cobrar dos Poderes da República. Desde 14 de maio de 1888, os negros seguem, em sua enorme maioria, alijados das benesses do Estado brasileiro. Os então senhores de escravos foram poupados de quaisquer responsabilidades com os negros. Sem dinheiro, os libertos não tinham meios nem destino certo. Foram (e ainda são), literalmente, marginalizados. Restaram-lhes continuar sob o regime de servidão nas propriedades rurais ou urbanas, ou tentar a sorte na periferia das cidades para fugir da truculência da República, proclamada em 1889.
Na largada, a chamada Velha República editou a Lei da Vadiagem, uma estratégia de controlar os ex-escravos. Reforçou os estereótipos em relação aos africanos e seus descendentes, o que dava margem aos atos de opressão. Nada muito diferente do que ocorre hoje, quando os negros são alvo dos agentes de segurança, que medem a honestide de indivíduo pela cor da sua pele; dos fundamentalistas, que os satanizam, dos neonazistas, orientados pelos falsos princípios da eugenia.
O deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP), que se autointitula príncipe, por ser herdeiro da família real portuguesa, quer escancarar as porteiras para recepcionar o retorno da escravidão. Não há outra interpretação para a sua Proposta de Emenda Constituição (PEC) que extingue o Ministério Público do Trabalho, todas as instâncias da Justiça do Trabalho, os Tribunais Regionais do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho. Assim, não haveria mais fiscalização contra os escravagistas de plantão nem meios para garantir os direitos conquistados pelos trabalhadores urbanos e rurais. Trata-se de retrocesso inominável, que só poderia ser proposto por alguém com mentalidade medieval, cujas raízes são nutridas pelo racismo e por outros valores incompatíveis com os avanços civilizatórios próprios do século 21, entre os quais humanismo, equidade social, respeito a todos os seres.
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