racismo

Artigo: Sorriso negro e felicidade: cultura negra e afeto na sociedade

MARCOS ALMEIDA PFEIFER - Servidor público, mantém o canal Veredas Brasileiras sobre MPB

No primeiro dia do ano, caminhando na beira da praia de Capão da Canoa, litoral gaúcho. Tinha ido agradecer a Iemanjá tendo os pés acariciados pela água do mar enquanto esboçava no pensamento as linhas que vou dedicar de texto, cultura e afeto para vocês, leitores. Convidado outra vez a escrever neste espaço que tem na cultura negra, entre pesquisas e vivências, um baluarte contra o racismo e opressão, decidi falar do afeto que sinto como brasileiro. Lembrei de famílias e pessoas que nutrem, entre os seus, amor e afeto a reverberar em suas comunidades e relações sociais. Somos uma sociedade de quilombos.

Gostamos da diversidade, das frutas e castanhas, do feijão à tapioca, da melodia de Nelson Sargento à de Louis Armstrong, do banho de mar ao de cachoeira, de experimentar um tempero novo, uma amizade nova, de partilhar com o vizinho a moqueca do jantar e receber aquele bolinho ou pêssego em caldas da vizinha. Quando encontramos dona Maria, seu Joaquim, ou nos corredores do edifício, no conjunto habitacional ou na rua que une as casas onde moramos, sentimos um aroma de café recém-passado, à luz de um sol raiando, e nossa alma assim despertando para a diversidade e beleza do compartilhar a vida. Quando percebemos o outro, dando nosso olhar e escutando com atenção, orientando com humildade, apontando a direção, serenamos o ambiente, partilhamos vida contente e, até o que era para ser artigo, vira canção. Esse afeto tem voz de samba e sorriso negro.

Tal afeto vem de minha mãe, irmãs e bloco de amigos no carnaval da cidade do interior onde morávamos. Lembrei da tia Elaine, sua alegria e energia ao chegar o carnaval. De gente comparando qual o samba-enredo mais bonito das escolas do carnaval do Rio de Janeiro. Nas ruas cujo calçamento fora posto por trabalhadores que descendiam de avós com a marca da exclusão social e possivelmente da escravidão, seus descendentes tinham a redenção de desfilar na avenida com suas passistas, mestres-salas e integrantes da bateria, onde cada olhar, paetê e lantejoula brilhavam feito estrelas no reconhecimento do público e na beleza de viver. E o que falar dos blocos burlescos ou blocos de sujo, aliviando o sofrer da vida, o homem vestido de mulher se encontra com o seu feminino e derrota o patriarcalismo rígido e opaco do nosso sistema ainda colonial.

Encontrei o afeto, esse que me benze, nutre e ilumina até hoje, na altivez do andar, na serenidade do olhar, na paciência da fala e gentileza perante a vida, na linda mulher chamada Floriana. Negra alta, vestidos ou saias de sutil beleza, pano na cabeça, o quibebe e o doce de figo a aguçar sabores com os quais ela presenteava minha mãe e nossa família com inigualável afeto, entrega e amor. O carinho na voz cantada quando cumprimentava as pessoas ou perguntava como estavam todos em casa. Depois, quando mudamos de cidade, a alegria do carnaval, do samba e de um sorriso negro bateu às portas da nossa casa com o Nêgo Caco e seu bloco convidando meus pais a serem padrinhos da agremiação, pois, na casa recém-alugada, o casal proprietário era quem apadrinhava o bloco.

Na minha carreira de revisor de textos e apresentador de rádio, vi a inteligência emocional nos meus amigos, colegas de trabalho e gestoras negras, em meio ao fogo socioeconômico de um sistema excludente e racista, combatendo a infâmia do preconceito com o afeto do coração e a beleza de um sorriso negro. Percebi um sorriso negro e senti minha alma sorrindo esse sorriso quando, desde menino, via os gols, os lances e a genialidade de Pelé, a energia irresistível no cantar de Jair Rodrigues, a presença de todas as mulheres negras na expressão vocal de Elza Soares.

E quando, para subsidiar este artigo, fui falando com as pessoas na praia, perguntando se sabiam cantar um samba ou lembravam de algum, vi a expressão de surpresa e alegria despontar nos rostos, pelo inusitado da pergunta. Senti como é bom falar em samba. A maioria lembrava ou sabia cantar algum samba. Seus semblantes ficaram leves e alegres com a enquete. Como cantava Dona Ivone Lara, genial compositora, inspiração da música brasileira e dessa matéria: "Um sorriso negro traz felicidade...negro é a raiz da liberdade".

O mistério e silêncio cósmicos que inspiram minha alma a atravessar tempo tão controverso e violento estabelecem o som de um atabaque, a fonte dos terreiros com seus orixás, e, entre o mar e a terra, a cantiga de paz, de amor, de fé, que veio d'África,foi plantada no Brasil e que sinto florescida no coração. Sorrindo um sorriso negro.

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