Tribunal Federal

Artigo: Militares na polícia

André Gustavo Stumpf - Jornalista

Na próxima semana, o Supremo Tribunal Federal deverá iniciar o julgamento dos radicais que foram indiciados pela Procuradoria-Geral da República nos atos belicosos do dia 8 de janeiro. Os manifestantes estavam acampados na área em frente ao Quartel General do Exército, tiveram proteção da tropa, que evitou a aproximação da Polícia Militar do DF, e deu guarida para que alguns revoltados fugissem na madrugada a pé, de carro ou de ônibus. Parte deles foi presa em flagrante delito durante os atos de depredação do Palácio do Planalto, dos prédios do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional.

Tudo seria simples, ou menos complicado, se não houvesse militares envolvidos no episódio. E os há. Esse é o problema, uma espécie de subtexto que define a crise de 8 de janeiro. Houve uma clara tentativa de golpe, que movimentou gente em todo o país. As forças populares, organizadas e infiltradas por especialistas no ramo da subversão, conseguiram destruir os símbolos da República brasileira. Demonstraram, à farta, que o poder central é desorganizado e desprotegido. Qualquer rebelião com algum grau de organização derruba o governo federal.

São, portanto, duas crises. Uma é a tentativa de golpe propriamente dita, que foi dominada com dificuldade por poucos policiais do DF e pelos dispositivos de segurança do Congresso e do Judiciário. A segunda crise, não escrita e pouco comentada, é a relação entre o governo Lula e o dispositivo militar que dá segurança ao poder central. A maioria dos depoimentos recolhidos sobre a matéria indicam que houve, no comando militar, algum grau de conivência com os revoltosos e certa boa vontade com a repressão aos grupos mais exaltados.

Ao que parece, e insinuam os fatos até agora conhecidos, o plano era provocar o caos no país de tal maneira que o novo governo seria obrigado a decretar o estado de Garantia da Lei e da Ordem, a conhecida GLO — que colocaria os militares no comando do governo brasileiro. O presidente Lula seria reduzido à posição de títere dos oficiais. A partir daí tudo é suposição. Militares revoltados contra o governo federal não constituem assunto novo na história do Brasil. A República começou com a revolta dos militares que retornavam da Guerra do Paraguai, queriam melhores salários e uma reorganização geral do Exército.

Os militares se revoltaram, absorveram a ideologia positivista — um governo democrático forte — e se associaram aos grandes fazendeiros que estavam descontentes com a maneira como foi realizada a libertação dos escravos. Os produtores pretendiam ser indenizados pelo Império por terem perdido muito dinheiro com o fim da propriedade sobre escravos, que tinham valor pecuniário. A resposta foi derrubar o Império, em 1889, colocar o imperador no navio, junto com a família, com destino a França. Três anos depois, D. Pedro II morreu, sozinho, no hotel Bedford em Paris. Foi enterrado com honras de chefe de Estado. No Brasil, a República foi iniciada por dois marechais. Os primeiros presidentes foram militares.

As crises dos anos vinte e trinta do século passado foram insatisfações militares. Todas decorriam da necessidade de modernizar o Exército, que, embora estivesse se espalhando pelo país, não possuía equipamento moderno nem fardamento adequado para seus soldados. Os cadetes perceberam que, para modernizar as forças armadas, era necessário modernizar o país. A solução era tomar o poder. As primeiras tentativas não deram certo. Em 1930, contudo, eles chegaram ao governo junto com Getúlio Vargas. Pegaram o gosto pela política.

Há outros episódios, mas o espaço é curto para tratar deles. O mais recente foi a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek. Depois, em 64, eles mesmos tomaram o poder, após retirar João Goulart da Presidência da República. O episódio desta semana levou o general Henrique Dutra de Menezes, ex-comandante militar do Planalto, a prestar depoimento perante um delegado da Polícia Federal. O tenente-coronel Paulo Fernando da Hora, que esteve dentro do Palácio do Planalto no auge da confusão, também prestou depoimento. Outros militares pertencentes ao Batalhão de Guarda Presidencial e ao Gabinete de Segurança Institucional foram levados para conversar com delegados da PF.

Voltando ao início: não é usual ver general brasileiro responder na Justiça comum por crime político. No desenrolar da história brasileira, eles costumam ser anistiados tempos depois e, em seguida, assumir o poder. Portanto, o presente episódio exige cuidado extremo para boa interpretação dos fatos pelos detentores do poder. O conselheiro Acácio, personagem imortal de Eça de Queiroz, costumava lembrar que as consequências vêm depois.

 


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