Opinião

Visão do Correio: A Ucrânia pode esperar

Os governos brasileiros, em diferentes épocas, foram protagonistas em diversas questões internacionais, numa liderança reconhecida em todo o mundo

Ocupada desde a Antiguidade por dezenas de povos diferentes, entre gregos, romanos, hunos, húngaros e outros, a península da Crimeia, no Mar Negro, é um dos principais motivadores da guerra entre Rússia e Ucrânia. Parte do império Russo desde 1783, ela passou a integrar a Ucrânia - então parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) — em 1954. Permaneceu assim por 60 anos, até que foi invadida e ocupada por Vladimir Putin em 2014, no que foi uma prévia do atual conflito.

A cessão do território foi feita pelo então secretário-geral da URSS, Nikita Khrushchev, para reforçar a "unidade entre russos e ucranianos" e a "grande e indissolúvel amizade" entre os dois países. A posse da Crimeia é tratada como questão de honra pela Ucrânia. O presidente Volodymyr Zelensky já declarou, mais de uma vez, que considera a península parte de seu país. Já do lado de Moscou, o argumento é que o território sempre foi de maioria russa, e só deixou o país de fato com a dissolução da URSS, em 1991.

É um nó monumental, extremamente difícil de ser desatado, e com dezenas de fatores e atores a serem considerados. Por isso, foi até elegante o porta-voz da diplomacia ucraniana, Oleg Nikolenko, na última sexta-feira, quando dispensou o plano de paz que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende propor para dar fim ao conflito. Na véspera, Lula disse que "Putin não poderia ficar com os territórios ocupados durante a guerra, mas talvez nem se discutisse a questão da Crimeia".

Nikolenko agradeceu os esforços de Lula para encontrar uma solução para parar a agressão russa, mas pontuou: "A Ucrânia não comercializa os seus territórios. Não há nenhuma razão legal, política ou moral pela qual temos de ceder pelo menos um centímetro de terra ucraniana. A posição ucraniana permanece inalterada: quaisquer esforços de mediação para restaurar a paz na Ucrânia devem basear-se no respeito pela soberania e na plena restauração da integridade territorial da Ucrânia de acordo com os princípios do Estatuto da ONU".

Após quatro anos tendo a imagem devastada pelo governo anterior e, principalmente pelo ex-chanceler Ernesto Araújo, é compreensível que a diplomacia brasileira tenha ânsia e urgência de retomar o papel de destaque que sempre ocupou diante do mundo, inclusive em negociações internacionais similares. O fato de Lula sempre ter atuado com desenvoltura nas conversas com líderes estrangeiros só deixa esse desejo por parte do governo ainda mais evidente.

Mas com exatos 100 dias de governo, completados hoje, entrar de cabeça em pendengas estrangeiras como a guerra da Ucrânia e a questão da Crimeia soa como um excesso de voluntarismo e uma falta de foco. Afinal, ainda seguem à espera de uma solução — ou pelo menos de um encaminhamento — problemas internos graves, como a política de preços da Petrobras, a briga diante da atual taxa de juros mantida pelo Banco Central e a articulação pela aprovação da reforma tributária e do arcabouço fiscal.

Os governos brasileiros, em diferentes épocas, foram protagonistas em diversas questões internacionais, numa liderança reconhecida em todo o mundo. Agora não será diferente. Mas é importante, neste momento, que o Brasil tenha foco nos desafios da economia, para o país voltar a crescer. A Ucrânia precisa de ajuda, mas já tem o apoio da comunidade internacional. O Brasil, por outro lado, só conta com seus próprios líderes.

 


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