NEUSA MARIA - Psicóloga, especialista em saúde mental, membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB Brasília
"Acordei com gritos, eles foram ficando abafados como se fossem gemidos, fiquei congelado, senti medo de ver o que estava acontecendo. De repente, ouvi ainda mais gritos desesperados. Eu tapei os ouvidos com as mãos, meu coração acelerou e eu comecei a chorar. No fundo, eu já sabia que a minha mãe estava morta. É uma dor que eu nunca vou esquecer." (C. A., 13 anos)
A violência doméstica impacta de forma profunda e negativa a vida das mulheres pretas. São dois marcadores, gênero e raça. Em 2022, das mulheres atendidas pelo projeto Renascer, de apoio a mulheres em situação de violência, 49% se autodeclararam negras, 30%, pardas. Assim, 79% das mulheres atendidas eram mulheres negras. Ou seja, a violência tem cor.
O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo, e o segundo maior em população negra. A violência doméstica atinge de forma brutal e covarde mulheres e crianças pretas. Raça é marcador social e de violência. Apenas nos primeiros 45 dias de 2023, seis mulheres foram assassinadas em Brasília. O Estado falhou na proteção, a rede falhou, nós falhamos. O feminicídio é uma morte evitável.
Algumas dessas mortes aconteceram na frente de crianças. Restam danos psicológicos e psicossociais. São os órfãos do feminicídio. Essa violência não termina com o feminicídio. Segue-se a negligência do Estado, a omissão em relação a essas crianças. É uma questão urgente e necessária. Temos um grave problema social e não podemos fingir que não existe. Queremos políticas públicas efetivas para as mulheres que alcancem também essas crianças. O poder público deve propiciar redes integradas com estruturas adequadas que atendam a demanda.
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O processo de adoecimento das crianças é agravado pelo racismo. A discriminação nega direitos, silencia e leva a outros tipos de violência. Precisamos refletir sobre o impacto social e psicológico do feminicídio das mulheres pretas e combater o fenômeno. Racismo e machismo podem ser desconstruídos. Há uma conivência do Estado que se omite em suas ações de proteção e redução de danos. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 2.300 pessoas tornaram-se órfãos do feminicídio no Brasil em 2021. É necessário compreender os efeitos do feminicídio e do racismo na vida desses órfãos para desenvolver políticas públicas específicas. Chega de invisibilizar mulheres e crianças negras e indígenas vítimas dessa violência.
Há uma falha em proteger mulheres e crianças negras. Quando uma mulher é assassinada, o Estado falhou em sua responsabilidade e provavelmente falhará nos desdobramentos desses casos. A sociedade diz para as mulheres romperem o silêncio, mas o Estado não garante ajuda. Elas querem sentir-se seguras, mas a realidade é ainda mais difícil para mulheres negras com essa cultura de sexualização de seus corpos. E se antes a criança assiste de forma passiva à agressão contra a mãe, desencadeando-se uma violência vicária e não raras vezes pode resultar em homicídio das próprias crianças como forma de atingir a mãe. Ademais, submeter a criança a ambiente violento pode gerar futuramente a reprodução de comportamentos aprendidos,desadaptativos e disfuncionais. Também não se ensina como lidar com a dor, não se fala sobre ela.
Racismo, machismo e misoginia agravam a violência. Há um silenciamento da denúncia, da voz de quem denuncia. Isso tem um preço, a vida. Crianças vítimas, negras e pobres, continuam órfãs, só que agora do Estado. O feminicídio traz sentimentos com os quais a criança órfã não consegue lidar, vê a mãe ser morta por alguém sobre o qual ela projetou seu amor. O apagamento em relação à criança negra gera uma coisificação, uma relação desigual que viola direitos, impedindo que ela tenha um desenvolvimento emocional pleno e saudável, e o racismo segue estruturando todas as relações.
Precisamos falar sobre os órfãos do feminicídio, a efetivação da Lei 7.716, racismo estrutural. É necessário afastar a criança desse contexto. Quando uma mulher é assassinada, gera mortes subjetivas, morte concreta não apaga uma vida que já foi vivida. Invisibilizar os filhos é matar novamente essa mãe. Há uma invisibilização social que precisa ser evitada, precisamos gritar por mudanças diante da gravidade e silenciamento do problema.
Há uma omissão, um corpo preto caído no chão, tinha sonhos, tinha filhos. Uma história para viver. O feminicídio deixa órfãos. Eles estão gritando. Mas eu não sei se você quer ouvir, se o racismo vai permitir. Suplicam por socorro, só querem existir.