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quilombo Kalunga

Artigo: Minhas memórias do povo kalunga, um lugar sagrado

pri-2904-opiniao Opiniao -  (crédito: Caio Gomez)
pri-2904-opiniao Opiniao - (crédito: Caio Gomez)
postado em 29/04/2023 06:00

Franca Vilarinho - Jornalista e fotógrafa

Em 2003, eu tinha uma câmera fotográfica, pouco dinheiro e vontade de conhecer o quilombo Kalunga, em Cavalcante (GO). Eu estudava fotografia, inspirada no grande Sebastião Salgado. À noite, a ideia martelava. Como chegar? Como comprar filmes? Fazia planos e sonhava. Era uma utopia. Fotografar era caro — comprar filme, pagar a viagem, a comida, revelar o filme sem poder ver as fotos antes como hoje é possível fazer. Tudo causava angústia e medo.

E conhecer um quilombo como? Busquei informação na Fundação Palmares, procurei amigos negros e lideranças do movimento em Brasília. Juntei o pouco que sabia e alguns filmes ganhados do Núcleo de Gênero e Raça da Fenasps. E fui. Antes, sofri críticas e reações negativas de quase todos, amigos e familiares. Ninguém entendia que eu fosse a um lugar afastado para conhecer gente pobre e negra. A partir daí, entendi melhor a sociedade em que vivia. Vi o preconceito racial nos olhos das pessoas. Forte, porém dissimulado. O negro não era bem-vindo no país. Mas a cor da minha pele gritava.

Lembrava do meu avô, um negro alto que casou com minha avó, branca. Ele falava de sua bisavó escravizada e de um lugar no Maranhão evitado pelas pessoas, onde viviam negros. Acredito que fosse um quilombo. Isso marcou minha vida: daí veio a vontade de ir a um quilombo e saber dessa gente ainda isolada. Quando decidi ir, era muito jovem, não entendia o racismo. Hoje sei como é difícil ter pele escura no Brasil. Foi no quilombo que me vi negra pela primeira vez.

Uma mochila, filmes, uma objetiva de 50mm e o coração batendo. A viagem durou quatro horas, de Brasília até Cavalcante. Dali, como chegar ao quilombo? Em cidade pequena, todo forasteiro é notado. Logo uma senhora puxou assunto, falei da minha intenção. "Procure a prefeitura." Um caminhão levava e trazia moradores doentes. Topei na hora subir na carroceria. Estrada de chão, buracos, poeira. Subimos a serra, precipício de um lado, mata fechada do outro. Sentia medo e o prazer do sonho se realizando.

Na comunidade Engenho II, o chão branco e as casas cobertas de palha se destacavam na imensidão. Sem luz, sem carros, cavalos amarrados fora das casas, como em filme de caubói. Fui recebida pelo sr. Cirilo dos Santos Rosa e dona Getúlia, sua esposa na época. Contei minha história, me receberam como uma filha.

À noite, a rua sem luz. Conversas ao pé do fogão a lenha iam revelando a vida naquele lugar. Logo, os 223 moradores já sabiam da minha visita. Acompanhei a dura rotina das mulheres e dos homens que iam à roça ao raiar do dia. Crianças buscavam lenha, dona Getúlia socava milho no pilão, varria o quintal e dava milho às galinhas. Sentindo-me em casa, comecei a ajudar. As crianças iam à única escola do local. Quando me viam,corriam envergonhadas. Mas comecei a brincar com elas e, então, se deixaram fotografar. Fui visitando casas e documentando aquela vida familiar e comunitária tão diferente da minha.

Engenho II se comunicava com o mundo via rádio. Nas casas, o fogo não podia apagar. Seu Cirilo contou que, antigamente, iam buscar sal e fósforos na Bahia, trocados por arroz, feijão e milho. Iam com burros e cavalos, enfrentando sol e chuva, mata fechada, rios e serras íngremes numa viagem de dois meses. Felizmente, esse tempo havia passado.

Um dia, fui fotografar a roça e me perdi. Saímos às 4h da manhã, com um simples café, rumo à serra. Lá, ouvi histórias e fotografei. Deu fome, não estava acostumada com o ritmo deles. Santana e eu cruzamos um rio para comer mangas. Ao voltar, nos perdemos. Anoitecia, chovia e lá havia onças. Caí, quebrei minha única lente. Chorei.

Depois das 17h, fomos resgatadas num estado lastimável. No vilarejo, havia uma mobilização: 10 homens saíram a cavalo para nos procurar, as mulheres rezavam. Até hoje contam o "causo". Não sei se é verdade, mas disseram que quase chegamos ao Tocantins.

Já voltei inúmeras vezes ao local. Fui a Vão de Almas e Vão do Moleque e ainda frequento o quilombo. Tenho um grande acervo de fotografias que contam a vida desse povo tão importante para o país e para mim. Ali, adultos de hoje podem ver sua infância. Fiz exposições e um documentário em que kalungas contam sua história. Vi chegar a luz elétrica, o ensino médio, a internet, os turistas. A menina Domingas dos Santos Rosa cresceu, tem licenciatura em educação do campo pela Universidade de Brasília, é professora e montou uma pousadinha. Uma líder nata, como os pais.

Muitas coisas mudaram em Engenho II. Seria preciso contar isso. Mas essa é outra história.

 


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