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Artigo: O presente como tutor do passado

pri-2004-opiniao Opinião -  (crédito: Caio Gomez)
pri-2004-opiniao Opinião - (crédito: Caio Gomez)
William Penido Vale
postado em 20/04/2023 06:00

WILLIAM PENIDO VALE - Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), escritor e consultor de agências internacionais, foi presidente da Caesb-DF

Em algum lugar a ser desvendado e recriado, encontra-se o passado, matéria-prima para o escritor. O narrador pode ser tão relevante quanto os personagens da narrativa, ajudando a forjar o futuro. Alguns dos clássicos da literatura voltaram-se para a exaltação épica de entidades triunfantes. É o caso de Virgílio ou Camões, que conjuraram o carisma glorioso do passado de impérios em expansão. Em certas circunstâncias históricas, no entanto, o escritor confronta-se com a premência de expor um passado necessário à superação de dilemas e ameaças do presente e vai buscar elementos passados que permitem remodelar e recriar narrativas a fim de prevenir o caminhar de um povo em direção a um futuro desolador.

Essa busca passa pelo resgate de fatos, lendas e mitos, tijolos e argamassas de uma construção nacional. Reflexões sobre esse tema perpassam de Heródoto a W. Benjamin e H. Arendt, incluindo Platão e Aristóteles e a literatura patrística (S. Agostinho, S. Jerônimo). Uma dosagem inadequada pode levar ao ufanismo irreal, a fobias de diferentes tipos, à intolerância ou, ainda, à baixa autoestima, ao complexo de vira-lata. É exatamente aqui que reside o grande mérito do livro de Silvestre Gorgulho, De casaca e chuteiras — A era dos grandes dribles na política, cultura e história, tributo a sua excelência jornalística e sensibilidade de escritor.

Silvestre Gorgulho recria o ideário de um sonho: "Não importam as dificuldades se há uma bela história para contar, seduzir e apropriar-se". Assim ele faz, com maestria, ressuscitando vozes do passado, muitas das quais sob ameaça de memoricídio (doloso ou culposo), quase esquecidas no presente.

Fala de JK e Pelé, dois grandes brasileiros que, superando dificuldades iniciais — ambos nasceram fora da casa-grande — conseguiram, graças ao talento, obstinação e coragem, se impor de maneira notável ao ambiente, deixando marcas indeléveis na memória nacional. São agentes inspiracionais, estimulando o orgulho de ser brasileiro.

O nacionalismo brasileiro é sobremodo territorial, carente de atributos de natureza inspiracional. Os anos JK constituíram o período mais fecundo da nossa história. Revivê-los, com a competência do autor, é uma rica contribuição para a ampliação daquele capital inspiracional indispensável à formação de povos e nações. A partir da revolução de 1930, durante o meio século mais singular da história brasileira, do ponto de vista de progresso material, estratificação social e participação política, ampliaram-se as bases de uma civilização tropical nas artes, ciências, esportes e participação popular.

Pelé e JK ajudaram a construir a noção de um Brasil de esperança. Projetaram ao mundo a imagem de um país promissor, disposto a lutar para se impor no rol das grandes nações e a superar as muitas contradições, os desequilíbrios internos e as injustiças do passado. A cidade plantada por JK no coração do Planalto Central encarnava a esperança de um futuro melhor para todos. Pelé, com seu talento e genialidade, nos permitia compartilhar cada gol, suas vitórias nos campos da vida.

A obra de Silvestre Gorgulho, a começar pela capa elegante e contrafatual, provoca reflexões. Pelas cuidadosas e criativas pegadas do escritor, revisitamos, país profundo adentro, a rota São Lourenço-Belo Horizonte-Brasília, povoada por familiares e amigos. Assistimos a uma incursão proustiana em um tempo e paisagens preciosos de sonhos, promessas e realizações. Não tivesse JK sido cassado em 1964 e pudesse ter concorrido e sido empossado em 1965, que país ele teria nos legado?

— Teríamos antecipado a ocupação e o desenvolvimento do Cerrado, tão preconizados por ele?

Teríamos tido tempo e oportunidade para fixar, de maneira descentralizada e menos traumática, populações rurais, evitando tensões demográficas nas periferias metropolitanas? Teríamos atingido o patamar de renda per capita média que garantisse um desenvolvimento equilibrado e sustentável? Teríamos ampliado nossa jovem democracia de maneira a blindá-la de populistas predatórios? Teríamos hoje uma sociedade mais integrada e mais justa?

Silvestre mostra que nosso país já foi maior, mais promissor e mais ingênuo. Tal proposição é parte verdade, parte mito. O todo é essencial. Nonô e Dico, crianças e adultos, com suas emoções, virtudes e defeitos, pertencem ao espaço privado de familiares e amigos.

JK e Pelé se constituíram personalidades públicas icônicas, bem maiores do que o espaço que lhes vem sendo reservado no panteão atual. Pessoas assim não morrem, continuam a reger as batidas do coração de uma nação.

PS: Dia 22 de abril, sábado, às 11h, para comemorar os 63 anos de Brasília, Anna Christina Kubitschek Pereira, presidente do Memorial JK, lança o livro de De casaca e chuteiras no Memorial JK.

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