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Opinião

Artigo: Representatividade negra e reafirmação identitária

O conceito de representar, segundo o uso corrente, é "reproduzir a imagem de; retratar, refletir, representar a natureza de algo"

pri-0804-opiniao Opinião -  (crédito: Caio Gomez)
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postado em 08/04/2023 06:00

FLÁVIO BARROS — Psicoterapeuta, militante e palestrante do movimento negro no Rio de Janeiro, atua na saúde mental da população preta

Há algum tempo temos presenciado o levantar da discussão sobre representatividade para pessoas negras. Entre o muito que se fala nesses debates, podemos ficar com a impressão de que representatividade significa apenas ter pessoas negras em lugares de destaque ou de prestígio social, como se bastasse colocar pessoas negras em determinado lugar e pronto, ali está o cumprimento dessa representação. Contudo não podemos ser tão rasos assim no analisar de algo tão significativo para a construção e manutenção da identidade da pessoa negra.

O conceito de representar, segundo o uso corrente, é "reproduzir a imagem de; retratar, refletir, representar a natureza de algo". Vamos pensar sobre duas dessas acepções — refletir e representar a natureza de algo. Se tivermos pessoas negras ocupando espaços na mídia, no meio institucional, na política, nas artes e em outros espaços de visibilidade e essas pessoas não estiverem conectadas com a sua natureza, suas matrizes e ancestralidade, teremos um sério problema para a real construção da representatividade.

Um exemplo clássico dessa problemática é o ex-presidente da Fundação Palmares, do governo anterior, e alguns políticos que acabam por ter atitudes e procedimentos que não vão ao encontro da afirmação identitária do movimento negro.

Faz-se necessário entender que, para o processo de construção da identidade de pessoas e grupos sociais minoritários, é fundamental contar com modelos. Aprendemos a ser no mundo e a construir um mapa mental saudável a respeito de quem somos e do que podemos ser a partir de imagens que representem a nossa natureza, para isso, recorremos às figuras dos nossos cuidadores, dentro do contexto social familiar; dos nossos professores, monitores, diretores e até colegas de classe, dentro do contexto escolar; das literaturas infantis que nos são apresentadas desde cedo; das imagens dos artistas, apresentadores e personagens que vamos consumindo nas mídias; do pediatra, ou dentista que nos acompanha desde criança; entre outros. As imagens com que nos relacionamos e consumimos ao longo das nossas fases de desenvolvimento são fundamentais para a construção de nossa identidade.

Para a população branca, esse repertório representativo nunca foi faltante. É um fenômeno tão naturalizado que parece contemplar a todos, porém não contempla. Vemos pessoas brancas desmerecendo a discussão da representatividade, justamente por não terem a preocupação de pensar sobre a temática, uma vez que não lhe é um fator faltante no seu processo de desenvolvimento, assegurado pela estrutura social que lhe privilegia.

A representatividade é um caminho que possibilita produzir e valorizar modelos representativos pretos por vias positivas, uma vez que o processo histórico escravagista e racista da estrutura social à qual pertencemos impossibilitou ao longo de anos que a população negra pudesse construir e acessar com regularidade modelos próprios desde cedo, em função do apagamento e deturpação da história do povo negro, que, diga-se de passagem, construiu este país, cuja maioria é negra, 56% segundo estimativa do Censo IBGE 2022.

Ter pessoas comprometidas com as suas identidades negras ocupando lugares sociais de visibilidade no Judiciário, Legislativo e Executivo; nas grandes mídias; na literatura e demais espaços de poder e prestígio possibilita à população negra se ver e se relacionar com essas imagens com as quais se identifica. Tal fato traz uma marca afirmativa no imaginário da pessoa negra, uma vez que ela terá recursos imagéticos que contribuirão para que sua autoafirmação identitária seja construída ou transformada por vias mais saudáveis.

Em suma, a pessoa negra acaba por acessar a possibilidade de se ver e se projetar em lugares de poder e de prestígio social, tomando como inspiração e modelo as figuras representativas disponíveis, já não só satisfazendo a representatividade, mas também considerando a necessidade de proporcionalidade nos diversos segmentos sociais. Finalizamos desejosos de que as trajetórias de construção representativa ajudem a tornar essa sociedade menos desigual e desumana, uma vez que não somos todos iguais nem tratados como tais.

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