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SOCIEDADE

Artigo: Os tipos de manifestação e operação do racismo, a equiparação de crimes e a tese do "racismo reverso"

Quero deixar claro que o objetivo aqui não é inserir essas considerações no debate sobre a efetividade do endurecimento de penas, a ineficácia dos sistemas para garantir seu cumprimento e outras perspectivas associadas ao contexto jurídico-penal em questão, escreve Suzana Varjão

Racismo. Protesto contra o racismo -  (crédito: Clay Banks/Unsplash)
Racismo. Protesto contra o racismo - (crédito: Clay Banks/Unsplash)
Suzana Varjão
postado em 05/04/2023 17:05 / atualizado em 05/04/2023 17:07

Pertinente e estimulante, o debate aberto pelo sociólogo Muniz Sodré, que, em seu mais recente livro (O fascismo da cor, editora Vozes), propõe uma revisão do conceito de “racismo estrutural,” até então significativamente absorvido — e pacificado — nos círculos acadêmico e da militância em defesa dos direitos da população negra.

Em síntese, o pesquisador afirma o caráter não estrutural do racismo no Brasil — sem com isso negar seu enraizamento na sociedade. Argumenta que a Abolição acabou com a estrutura escravista no país, mas não com a discriminação negativa contra o grupamento social em foco, de caráter, como sustenta, intersubjetivo e institucional.

Arguindo a precisão do conceito de “estrutura” nos campos da sociologia e da filosofia, Muniz Sodré problematiza seu uso na classificação do fenômeno, com o nítido propósito de tirar as cascas de um processo secular de dominação para melhor compreender sua dinâmica. E o faz com a propriedade de quem conhece o poder performativo das palavras.

Pratica um exercício intelectual com a consciência de seu impacto na vida prática, porque não há sistema, por mais operacional que seja, que tenha sido construído ou funcione à revelia de conceitos (que carregam valores, visões de mundo...). E foi essa perspectiva que, inspirada pelo estudo do pesquisador, me motivou a escrever o presente ensaio.

Não com a estatura desse grande intelectual — uma de minhas grandes referências na temática –, nem especificamente sobre o conceito que ele contesta, mas sobre os conceitos em geral que gravitam em torno da problemática do racismo, que precisam ser melhor trabalhados na esfera pública, uma vez que produzem efeitos significativos na vida social.

Parto de alguns desses efeitos — na esfera jurídica, precisamente — para expor a necessidade, entre outras, de uma revisão articulada de tipologias, definições, categorias, conceituações, enfim, vinculadas ao tema, uma vez que algumas delas tiveram o significado deslocado com os passos dados nessa arena de luta, impactando outras.

Tomo como fio da meada dessa reflexão — que, advirto, traz mais perguntas que respostas — a equiparação dos crimes de injúria racial e racismo, a partir de janeiro último, quando sancionada a Lei 14.532, aumentando a pena restritiva de liberdade para a injúria e tornando o crime imprescritível e sem possibilidade de pagamento de fiança.

Quero deixar claro que o objetivo aqui não é inserir essas considerações no debate sobre a efetividade do endurecimento de penas, a ineficácia dos sistemas para garantir seu cumprimento e outras perspectivas associadas ao contexto jurídico-penal em questão. Muito menos insurgir-me contra qualquer avanço no combate à perversidade do racismo.

Para os que não conhecem minha trajetória profissional e política, sou estudiosa e militante da causa negra, com a qual contribuo produzindo/coordenando pesquisas, publicando livros e estruturando mecanismos de enfrentamento a essa chaga social – notadamente, em sua interseção com o campo da comunicação de massa.

O que aqui ponho em xeque é a equiparação de crimes que têm o mesmo viés discriminatório, mas impactos diferentes — igualmente sórdidos, mas em graus diversos. E seu nivelamento acabou produzindo “pontas soltas” no conjunto de conceituações associadas à problemática, gerando, no mínimo, outra equivalência preocupante, como adiante registrado.

Partamos do básico.

A engrenagem do racismo (legitimado pela falsa premissa científica da existência de raças humanas) foi montada com base na hierarquização de grupamentos humanos; na construção e naturalização da identidade negra como “menor”; na instituição, enfim, de uma identidade hegemônica (branca, ou não-negra) e seu “outro”.

E a discriminação negativa é operada dentro dessa lógica, com o contingente hegemônico negligenciando, dificultando ou impedindo o acesso do grupo subalternizado a direitos que deveriam ser universais – isso, praticado, notadamente, no âmbito das instituições públicas e privadas, prejudicando não apenas esse ou aquele sujeito, mas toda uma coletividade.

Dessa perspectiva, era possível inferir, por exemplo, a impropriedade da existência, na atualidade, do “racismo reverso” no Brasil, uma vez que seria inviável o exercício da discriminação do grupo subjugado contra o subjugador — ou, em outros termos, de os dominados exerceram dominação sobre os dominantes.
Importante frisar que não estou subestimando, ou negando, o caráter subjetivo da operação do racismo. Um indivíduo, por exemplo, tendo o poder de barrar o acesso de outro a um posto de trabalho, por convicções étnicas, ou fenotípicas, o exerce. Foco o discurso na manifestação mais abrangente do fenômeno, para facilitar a exposição de minhas inquietações.

Essa macro-operação, direta, objetiva, foi ordinariamente realizada, por muito tempo, sem “alarde”, de modo sub-reptício, sendo visibilizada por seus efeitos maléficos: a baixa presença de negros em espaços valorizados de conhecimento e poder (universidades, cargos de chefia, Parlamento) e, em oposição, o alto registro em estatísticas negativas (taxas de homicídios, etc.).

Injúria racial é um xingamento, um insulto, uma expressão da mentalidade racista. Como todo “discurso”, produz impactos — diferentes, porém, daqueles gerados pela prática do racismo. Deslocarei, adiante, esse tipo de ação do grupo dos não-negros para o dos negros, para melhor percepção das questões abertas pelo nivelamento puro e simples dos crimes.

O desmascaramento da mentira da “democracia racial”, por força do movimento antirracista brasileiro, propiciou a estruturação de mecanismos para mitigar a secular injustiça contra as pessoas negras, e as engrenagens de operação do racismo, então automatizadas, invisibilizadas e incorporadas aos fazeres cotidianos, estão sendo, aos poucos, expostas e desarticuladas.

Como consequência, a supremacia do silêncio no grupamento hegemônico foi rompida e a proclamada cordialidade existente entre descendentes de escravizados e de escravizadores se se converteu em discursos raivosos, vez por outra devolvidos pelos indivíduos ofendidos – o que deu fôlego aos defensores do “racismo reverso”.

Com a equiparação pura e simples da injúria racial à prática do racismo, também essas reações contra indivíduos de uma identidade hegemônica opressora são elevadas à categoria de racismo, atingindo, na mesma medida, sujeitos do grupamento negativamente discriminado e surrupiado em seus direitos e aqueles que os discriminam e surrupiam.

Imperioso assinalar que todo e qualquer delito, praticado por qualquer indivíduo, de qualquer identidade, deve ser reprimido. Não se trata, aqui, portanto, de defender penalidade seletiva. Trata-se, ao contrário, de expor o desequilíbrio de uma pretensa igualdade de responsabilização, gerado a partir do nivelamento de conceitos e tipos criminais.

Importante também sublinhar que falo com base na atualidade brasileira. Obviamente, assim como os conceitos, os contextos sociopolíticos, econômicos e culturais alteram-se, com o passar do tempo. E o que hoje é proto racismo (ou seja, estado, ou manifestações anteriores ao racismo), amanhã pode ser configurado como racismo.

Mas a realidade brasileira ainda não se transformou a esse ponto. A condição socioeconômica e étnico-cultural dos não-negros ainda é hegemônica, dominante, em oposição à dos negros, ainda significativamente ausentes, como mencionado, em espaços valorizados de conhecimento e de poder – principalmente, de poder.

Sem os deslocamentos ora provocados pela — ou a partir da — esfera penal, compreendia a injúria eventualmente praticada contra não-negros como, no máximo, proto racismo. Preocupante, mas não racismo, pela inexistência de condições objetivas de os negros operarem, efetivamente, esse tipo de crime contra os não-negros, dificultando ou impedindo o acesso deles a direitos.

Em recente artigo publicado no The New York Times, os pesquisadores Yuval Noah Harari, Tristan Harris e Aza Raskin alertam para os perigos inerentes ao descompasso entre o avanço da Inteligência Artificial e a capacidade de absorção, pelas culturas — seus diferentes graus de desenvolvimento e acesso à informação (de qualidade).

A mesma preocupação, aliás, que motivou centenas de especialistas espalhados pelo planeta a assinaram um apelo para que as pesquisas sobre IA mais potentes do que o ChatGPT 4 sejam suspensas, até que se estruture minimamente mecanismos de fiscalização e controle, por representarem "grandes riscos para a humanidade".

É esse tipo de descompasso que está, analogamente, no cerne dessa reflexão, que, como dito, não tenciona responder, mas levantar questões para o debate público, em função dos riscos envolvidos. Entre eles, o de contribuirmos mais para inchar o sistema penal com pessoas negras e pobres do que combater, efetivamente, a iniquidade do racismo.

* Suzana Varjão é jornalista e escritora; autora dos livros Micropoderes, macroviolências e Violações de direitos na mídia brasileira, que tratam da questão social em foco; e coordenadora das pesquisas Imprensa e racismo e Parlamento e racismo na mídia. Todos disponíveis em PDF nas plataformas on-line.

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