Em meados dos anos 1980, com muita alegria, trabalhei ao lado da freira Helena Arns, irmã da pediatra e sanitarista Zilda Arns, coordenadora da Pastoral da Criança, morta em 2010, num terremoto no Haiti, e de dom Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, que se despediu deste mundo em 2010. Irmã Helena foi uma das vítimas da covid-19, em 2020. Ela e Zilda eram duas mulheres excepcionais. Lembrei muito delas, ante as imagens das crianças e adultos ianomâmis famélicos, em Roraima.
Nos quase quatro anos em que trabalhei com a irmã Helena, produzindo o Boletim da Pastoral da Criança, não repetimos imagens semelhantes ou piores a cada edição. Publicamos fotos de crianças extremamente magras, na pele e no osso. Após consumirem a multimistura e receberem os cuidados necessários, as crianças recuperaram o peso e a vitalidade. A multimistura é um composto de farelo de arroz e trigo, folha de mand ioca e sementes de abóbora e gergelim, criada pela médica pediatra e nutróloga Clara Terko Takaki Brandão, na década de 1970.
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Ao ver a situação dos pequenos ianomâmis, imaginei o quanto irmã Helena e Zilda não poderiam ajudar na recuperação deles e de tantas outras crianças que ainda enfrentam a subnutrição no país. Mas não é preciso ir até a Terra Indígena Yanomami para conhecer de perto a situação famélica das crianças. Dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) — Programa Nacional de Alimentação Escolar do governo federal —revelam que 63,2% das crianças estão abaixo do peso por falta de comida. A tragédia se espalha por todo o país.
No ano passado, o Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), registrou 2.754 internações de bebês menores de um ano por desnutrição e suas sequelas, e deficiências nutricionais. A falta de alimentação adequada é causa de mortalidade precoce, expõe as crianças a doenças infecciosas recorrentes, causa prejuízos ao desenvolvimento psicomotor e resulta em menor aproveitamento escolar, além de reduzir a capacidade produtiva na fase adulta.
Uma realidade incompreensível em um país, como o Brasil, com uma das maiores áreas agricultáveis do planeta e que, a cada ano, bate recorde de milhões de toneladas de alimentos, capazes de suprir a necessidade de mais de um bilhão de pessoas no mundo. Embora o agronegócio seja de grande importância para a economia do país, os agricultores familiares são responsáveis por 70% dos alimentos que chegam aos lares brasileiros. Há 30 milhões de hectares de terras agricultáveis disponíveis, segundo o presidente Lula. Assim, ampliar a produção agrícola voltada ao mercado interno é mais do que necessário — é medida urgente — para evitar a morte do futuro: crianças e jovens.