Opinião

Artigo: Um mapa para resgatar as crianças

Números inéditos que mostram o aumento da pobreza e do risco de insegurança alimentar, a queda na vacinação e no número de crianças na escola revelam uma crise social alarmante

Naercio Menezes Filho — Coordenador do Comitê Científico. Professor Titular da Cátedra Ruth Cardoso do Insper e associado da USP, e membro da Academia Brasileira de Ciências

Márcia Castro — Professora de demografia e diretora do Departamento de Saúde Global e População na Universidade de Harvard (HSPH). Membro da Academia Brasileira de Ciências

A crise econômica que o país atravessa tem entre as famílias pobres com crianças pequenas o seu retrato mais cruel. Números inéditos que mostram o aumento da pobreza e do risco de insegurança alimentar, a queda na vacinação e no número de crianças na escola revelam uma crise social alarmante. O recém-lançado estudo Impactos da desigualdade na primeira infância, do Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), analisa a evolução de indicadores econômicos, de saúde e de educação de 2001 a 2022 e comprova a urgência de políticas públicas de qualidade para não deixar que a situação atual se perpetue.

Do ponto de vista econômico, o desemprego foi agravado para aqueles menos escolarizados e também para negros e indígenas. As diferenças entre os grupos mais e menos escolarizados dobraram ao longo de duas décadas. Em 2001, a taxa de desemprego era de 10,9% entre os que não tinham completado o ensino médio e 7,6% entre aqueles que tinham finalizado essa etapa. Em 2020, a diferença entre esses dois grupos aumentou para 8 pontos percentuais, e em 2022 foi reduzida para 5,6 pontos percentuais — quase o dobro da verificada há 20 anos.

No recorte por raça e cor, observa-se o mesmo fenômeno. Em 2001, o desemprego entre as pessoas negras ou indígenas responsáveis por domicílios com crianças pequenas era de 11,6%; enquanto a taxa era de 8,9% entre os brancos e amarelos, uma diferença de 3 pontos percentuais. Em 2020, essa diferença dobrou para 6 pontos percentuais e se estabilizou em 4% em 2022.

A crise econômica se traduz em outros dados alarmantes. Em 2021, 11% das crianças de 0 a 6 anos (2,3 milhões) ainda viviam em domicílios sem renda suficiente para suprir as necessidades de calorias diárias. Isso representa 1 em cada 10 crianças brasileiras.

Na educação, avanços que já haviam sido conquistados também deram lugar a recuos impactantes. Apenas 26% das crianças mais pobres de menos de um ano a três anos de idade estão na creche e houve quedas abruptas de matrícula nessa etapa. Considerando os pré-escolares, aproximadamente 450 mil crianças podem não estar recebendo ensino formal.

Na saúde, a saída de profissionais do Programa Mais Médicos de alguns municípios sem sua devida substituição foi responsável por um aumento de até 58% na mortalidade de crianças menores de 5 anos, como mostra um levantamento da revista Piauí. A cobertura da vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) caiu de 79,9%, em 2015, para 62,8%, em 2020, enquanto a imunização contra a poliomielite passou de 98,3% para 76,1% no mesmo período.

O recorte regional mostra que o Brasil apresenta maior desigualdade territorial. A taxa de inatividade, por exemplo, de pessoas sem ocupação que não procuram mais por trabalho era maior nas regiões Norte (37,4%) em 2001, e menor na região Sul (30,2%), com uma diferença de 7,2 pontos percentuais. Em 2022, essa disparidade saltou para 17 pontos.

Esse conjunto de dados expõe as crianças pequenas de famílias mais pobres a riscos no presente e também no futuro. Cuidados adequados com a saúde física, mental e emocional na primeira infância é preditor de um indivíduo com mais saúde e mais oportunidades ao longo de toda a vida até a velhice.

As evidências mostram o caminho mais seguro e eficaz para lidar com esses desafios. Os indicadores destacam a urgência de ações coordenadas entre governo federal, estados e municípios. Programas de transferência de renda focados nas famílias em situação de extrema pobreza são um primeiro passo necessário e importante.

Iniciativas como a Estratégia Saúde da Família (ESF), responsável pela redução da mortalidade infantil entre seus impactos positivos, têm de ser fortalecidas e expandidas para todas as regiões mais pobres. Ações de busca ativa escolar, recuperação de aprendizados e o monitoramento sobre a necessidade de vagas em creches e educação infantil devem ser priorizadas para compensar o atraso que se instaurou na educação.

Há muito trabalho pela frente. Mas os caminhos estão dados pela ciência e pela experiência. Não podemos deixar que o CEP, a cor da pele e a renda familiar selem o destino de uma criança. Todas e cada uma delas têm de ter seus direitos priorizados e garantidos.

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