MARCUS VINICIUS DIAS - Médico e servidor público, foi secretário executivo adjunto do Ministério da Saúde
Milhões de brasileiros neste momento estão no tempo litúrgico denominado Quaresma, que compreende o período do calendário entre o carnaval e o domingo de Páscoa, grosso modo. Em linhas bem superficiais, durante esses dias, parte significativa dos cristãos se preparam para o momento de ouro, por assim dizer, de sua crença: a ressureição do Messias, sacrificado para o perdão de todos aqueles que nele crerem.
É um tempo em que se pratica oração, penitência, mas, sobretudo, a caridade, que não é outra coisa que o famoso "amar o próximo como a ti mesmo", substrato essencial à construção daquilo que, 1800 anos depois, propiciou, de algum forma, o "liberté, égalite, fraternité", e que até hoje é propalado aos quatro cantos.
A essência do cristianismo é o amor ao próximo, e o fundamento é a salvação das almas, numa perspectiva de ressurreição na eternidade. A morte do Cristo, em sacrifício em nome dos fiéis, é a síntese para aqueles que comungam dessa fé. No plano espiritual, segundo a crença, é isso que ocorre. Mas no plano físico seria possível algo similar, uma espécie de imitação de Cristo, como sugeriu Tomás de Kempis? Em termos de saúde coletiva, no plano biológico, digamos assim, a doação de órgãos pode, numa esfera terrena, rememorar, de algum modo, o sacrifício do Nazareno.
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Recentemente, assistindo a um programa apresentado pelo icônico Roberto Kalil Filho sobre disfunções cardíacas que levam a uma falência do coração e à necessidade de um transplante do órgão, me ocorreu essa analogia. De antemão, advirto que não se trata de uma pregação religiosa, nem tampouco uma interpretação teológica. O que tento aqui é tratar de saúde.
Nesse tema, que me é afeito, vimos uma evolução sem precedentes em termos de técnicas, equipamentos, medicações e suporte na área de transplante de órgãos, desde que o 1º foi realizado no mundo na década de 1960. Mas o que nos sobra em técnica e demanda, falta-nos em doadores. E isso, a despeito do progresso da ciência, é o que nos limita a dar vida nova a quem precisa.
Em tempos em que o sacrifício, dentro de uma perspectiva de salvação da alma, é lembrado mundo afora por bilhões, gostaria de chamar a atenção para um sacrifício de que todos nós podemos precisar, mas também fazer, em algum momento da nossa caminhada terrena. Um coração batendo num corpo que não mais tem vida pode ser a redenção de uma existência que, por falha dele, se aproxima do fim.
Há 2 mil anos, não só uma nova religião surgiu, mas uma nova civilização, a partir da morte física de um homem com o intuito de salvar a alma de muitos. Que em nossa sociedade que, independentemente da crença ou não na experiência do Cristo, está fundada em valores que, de algum modo, foram inaugurados por ele, possamos nos inspirar no amor ao próximo e, mesmo na morte, consigamos assegurar a oportunidade de ressurreição física a alguém. Doar um órgão é mais do que ser adepto desta, daquela ou de nenhuma fé. É, acima de tudo, uma forma inequívoca de amor à vida.