WILLIAM DOUGLAS - Professor de direito constitucional e escritor
Nikolas Ferreira, do PL, e Renato Freitas, do PT, estão enfrentando pedidos de cassação. Nikolas usou uma peruca para ironizar a tese do "lugar de fala" e, dizendo se sentir como mulher, afirmou que as mulheres estão sendo prejudicadas por homens que se sentem mulheres. Ele é o deputado federal mais votado do país, com 1,47 milhão de votos.
Renato Freitas está sendo acusado de ter feito alegações infundadas, distorcidas e ofensivas contra os policiais do Paraná, chamando-os de "assassinos, covardes, servos do mal" e de "seres bestiais". Nikolas foi escolhido por eleitores que não querem ver, no banheiro feminino, pessoas com pênis, e que mulheres biológicas não tenham que competir, nos esportes, com quem nasceu homem. Renato foi escolhido por eleitores que reclamam das 488 pessoas mortas pela Polícia Militar do Paraná, segundo ele a sexta que mais mata no Brasil sem que o estado seja a sexta maior população do país.
Certos ou errados em suas manifestações, ambos representam seus eleitores, cidadãos com direito à voz e à isonomia de tratamento. Não se pode, por simpatia ideológica, ter dois pesos e duas medidas: achar admissível uma fala e criminalizar e amordaçar a outra. Calar o parlamentar é calar o povo que o elegeu. O artigo 53 da Lei Magna diz que "Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos" e, certa ou errada, essa foi a escolha do povo, o titular do poder. Antonin Scalia, da Suprema Corte dos EUA, disse que não se pode, a pretexto de interpretar a Constituição, reescrevê-la.
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Reduzir o alcance do artigo 53 submete a opinião do eleitorado aos humores, às maiorias parlamentares e à interpretação dos magistrados. Autoridades, eleitas ou não, precisam se curvar ao povo. Daí, políticos não podem usar eventuais maiorias para retirar do Parlamento as ideias que os incomodam e juízes, sem um único voto popular, não podem retirar parlamentares do lugar onde os eleitores os colocaram.
Sobre uso da ironia, vale citar a ADI 4451, que, por unanimidade, acolheu o voto do relator, o ilustre ministro Alexandre de Moraes: todas as opiniões são possíveis em discussões livres, de forma irrestrita e aberta; liberdade de expressão também se direciona a proteger as opiniões exageradas e condenáveis e que a Corte Europeia de Direitos Humanos legitima a sátira, forma de expressão com exacerbação e deformação da realidade, como meio para provocar e agitar. Essa sábia decisão protege a Chicos e Franciscos.
É errado alegar que a imunidade parlamentar não é absoluta como veículo para tornar letra morta a liberdade de fala dos parlamentares, reduzindo-a a um grau menor que a dos demais cidadãos. Enquanto os cidadãos podem preferir silenciar, os políticos precisam falar e é evidente que a Constituição deu a eles um espectro maior para isso: falar por seus eleitores. Faz sentido que os humoristas do Porta dos Fundos e a Netflix ironizem Jesus, Deus, Maria etc. com mais liberdade que deputados possam falar na tribuna?
George Orwell, que escreveu sobre totalitarismo, disse que, "se a liberdade significa alguma coisa, será, sobretudo, o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir. Hoje, em vez de discutir as ideias, toda a energia dos adversários vem se dirigindo a cassar o direito de fala e a presença do oponente. Pior: submeter a liberdade de fala ao Judiciário desequilibra a independência dos poderes e a democracia representativa.
O país precisa de um freio de arrumação. Deixar que esses debates ácidos ocorram nos Parlamentos é parte do processo civilizatório, evitando que ocorram nas ruas. Ninguém, a pretexto de deter maior sabedoria, pode querer ser o dono da verdade e calar ou dar a quem pensa diferente a pecha de criminoso. Só o debate tem o poder de amadurecer a sociedade e o melhor lugar para ser dito o que as pessoas pensam é a tribuna. Doa a quem doer.
Citando Ciro Gomes, em debate eleitoral com o Cabo Daciolo, podemos repetir: "A democracia é uma delícia, mas tem certos custos. Não há almoços nem democracia gratuitos. Se não quisermos viver o totalitarismo descrito por Orwell, nem fazer vazio e inócuo o texto da Constituição, temos que aprender a lidar, sem mordaças ou ameaças, com o desconforto. Nikolas e Renato, e demais parlamentares, têm que poder trazer para a tribuna toda a insatisfação, dor, reclamações, expectativas, desabafos, reivindicações e opiniões dos seus eleitores. Democracia tem custos, e ouvir o que profundamente nos desagrada é um deles.