CRISTOVAM BUARQUE - Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Quando adotada, em 1995, no Distrito Federal, a ideia da Bolsa Escola teve a bondade de trazer para o Brasil o sentimento de que "lugar de criança é na escola". Passou-se a utilizar recursos públicos para remunerar as mães pobres, desde que os filhos frequentassem a escola no lugar de trabalhar.
O Auxílio Brasil perverteu a bondade ao destituir o programa de sua conotação educacional: exigência de frequência às aulas. Ao voltar a exigir a frequência às aulas e outras condições, a reforma feita pelo presidente Lula recupera parte da bondade, mas deveria ter colocado como condição a ida dos pais à escola dos filhos, ao menos uma vez por mês, e passado a chamar o programa de Bolsa Família-Educação ou Bolsa Educação da Família, além de levar sua gestão para o Ministério da Educação (MEC).
Professores e pais sabem que liberar os estudos dos filhos e alunos, dando-lhes notas gratuitamente, é uma bondade contaminada. Agrada, mas prejudica o futuro. O mesmo pode ocorrer com gestos de governantes que beneficiam eleitores no presente, sacrificando o conjunto da população no longo prazo.
O governo Lula tomou medidas para corrigir uma dessas bondades contaminadas criada pelo governo anterior, que protegia o consumidor do aumento no preço internacional do petróleo, com a suspensão da cobrança de impostos. Foi uma bondade para beneficiar os eleitores atuais, sacrificando o país no futuro, ao provocar graves desequilíbrios fiscais, consequente redução na qualidade dos serviços públicos, além de manter a preferência pelo uso de combustível fóssil, no lugar de marchar para a substituição por fontes alternativas de energia.
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Por séculos, o Brasil utilizou o sistema fisiológico de indicação de servidores públicos escolhidos entre amigos e parentes dos governantes. Foram necessárias décadas de República para adotar a regra de concurso público na escolha dos melhores e não dos mais bem relacionados. Mas, ao negar educação de qualidade à quase totalidade dos brasileiros, o concurso público ficou contaminado pela exclusão dos milhões impedidos de disputar a seleção.
Para aqueles que se beneficiaram da boa educação, em geral porque tinham condições para pagar boas escolas, o Brasil avançou na bondade do interesse público, ao adotar o instituto da estabilidade funcional do aprovado no concurso: o dirigente não pode mais indicar aliados, nem demitir opositores. Mas, ao abolir sistemas de avaliação do servidor, essa bondade foi contaminada e deixa o público sujeito, algumas vezes, à ineficiência de servidores capazes de passar no concurso, mas sem motivação para exercer a função para a qual foram selecionados.
Sem a gratuidade, milhões de brasileiros ficariam sem condições de frequentar as escolas de base ou de serem atendidos pelo SUS. A gratuidade é uma ferramenta da justiça social. Mas, sem um programa de empoderamento dos usuários e consequente avaliação dos serviços, a gratuidade fica contaminada ao impedir que o público cobre na qualidade dos serviços que recebe.
A gratuidade do serviço público é uma bondade que foi contaminada. Ao sentir que recebe sem pagar, o usuário ignora que a gratuidade é paga por todos que pagam impostos. A concepção de que ninguém paga pelo que é gratuito corrompe o imaginário político do eleitor, que não sente o direito de exigir qualidade no atendimento dos serviços públicos. Aceitam-se escolas públicas paradas, enquanto as pagas não param, hospitais sem médicos, nem medicamentos, enquanto os privados atendem a quem paga.
O Brasil acertou ao usar a bondade dos subsídios industriais e adotar proteção alfandegária à indústria nacional nascente. Sem isso, nosso parque produtivo não deslancharia, impedido pela concorrência dos setores estrangeiros mais eficientes. Mas a manutenção do protecionismo e dos subsídios ao longo de décadas impediu a competitividade e a eficiência da indústria nacional. O que era para proteger no início da industrialização viciou setores no protecionismo, deixou a indústria sem condições de concorrer no mercadomundial e continua desequilibrando as finanças devido ao volume de subsídios permanentes.
A bondade da democracia é contaminada pelo imediatismo do eleitor e seu horror a sacrifícios, por isso, é difícil contar com vacinas contra a contaminação das bondades. O Brasil tem sido exemplo na adoção de bondades sociais, mas precisa corrigir os efeitos perversos que suas contaminações provocam.