ALMIR PAZZIANOTTO PINTO - Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Criou o Conselho Superior da Justiça do Trabalho
Eleito e empossado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não havendo dúvida sobre a regularidade em que se desenvolveram as eleições, era de se esperar que o tema Forças Armadas saísse de pauta. Ressalvadas as dificuldades com a economia, retomada do crescimento, geração de empregos, inflação, taxa de juros, proteção ao meio ambiente, assuntos a serem resolvidos mediante atuação dos ministros das esferas competentes, o país está pronto para trabalhar. Os acontecimentos de 8 de janeiro ficarão a cargo do Poder Judiciário. Espera-se que os acusados sejam julgados com pleno direito de defesa segundo o devido processo legal.
Aparentemente, porém, há quem tenha interesse na permanência em pauta do tema Forças Armadas. Desde a Carta Imperial de 1824 é sabido que "A força militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima" (art. 147). Autoridade era o imperador, chefe do Poder Executivo, que o exercia com a ajuda dos ministros. (art. 102).
A Constituição de 1891 não dedicou capítulo às Forças Armadas. Conferiu, porém, ao presidente da República competência para "exercer ou designar quem deva exercer o comando supremo das forças de terra e mar dos Estados Unidos do Brasil, quando forem chamadas às armas em defesa interna ou externa da União" (art. 48, 3º). Simples e claro era o dispositivo. As Forças Armadas permaneceriam aquarteladas. Sairiam às ruas no caso de mobilização em defesa interna ou externa da União.
A efêmera Constituição de 1934 definiu as Forças Armadas como "instituições nacionais permanentes e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a pátria e garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei" (art. 162). A Carta Constitucional de 1937 foi minuciosa nos assuntos relativos às forças militares de terra e mar, à segurança nacional, à defesa do Estado. Do artigo 160 ao 173 cuidou dos três temas. Não impediu, todavia, que, em 29 de outubro de 1945, Getúlio Vargas fosse deposto por golpe de estado, liderado pelo ex-ministro da Guerra general Eurico Gaspar Dutra.
A Constituição de 1988 define as Forças Armadas como "instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, destinadas à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais". Inovou, contudo, ao acrescentar que podem ser convocadas por qualquer dos Três Poderes, em defesa da lei e da ordem (art. 142).
Cabe indagar como e quando o Legislativo ou o Judiciário estarão autorizados a proceder a convocação das Forças Armadas, para manter a lei e a ordem? Enquanto estiver na chefia do Poder Executivo, o presidente da República é a autoridade suprema. As expressões "e por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem" no art. 142, tem ensejado especulações. Qualquer é pronome indefinido. Na Constituição, nada tão indesejável do que a falta de definição.
A obscuridade do dispositivo se resolve com a invocação do art. 84, XIII, cujo texto ordena: "Compete privativamente, ao Presidente da República: (...) XIII — exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos". Comando supremo impõe a exclusão de qualquer outro. Logo, o comando das Forças Armadas pertence ao presidente da República, salvo em caso de impedimento ou vacância. Ocorrendo uma dessas hipóteses, a sucessão presidencial observará as disposições dos artigos 79 e 80.
Assumirão, pela ordem, o vice-presidente, o presidente da Câmara dos Deputados, do Senado e do Supremo Tribunal Federal. Violar a ordem determinada pela Lei Fundamental, no caso de impedimento ou vacância do titular, será golpe de estado.
A Constituição foi escrita em clima de revanchismo e de utopia. Em muitos dispositivos os constituintes adotaram soluções construídas no vácuo. Como disse alguém, foi produto "não da análise, mas da aspiração". Transportado o problema para a vida real, indago se nos acontecimentos de 8 de janeiro, os presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado, do Supremo Tribunal Federal, em defesa da lei e da ordem tivessem convocado as Forças Armadas seriam obedecidos? Essa é a questão.