HELTON SOUTO - Especialista em gestão e políticas públicas com ênfase em projetos na área de Educação, é fundador e presidente do Instituto Dacor
O Brasil é um país negro. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, a população do Brasil é composta de 56% de pessoas negras, sendo, portanto, a maioria da população. Esse é um dado básico de nossa constituição como população e sociedade e que deveria constar na parede de toda escola, em todas as repartições públicas, em todos bares, comércios, pontos de ônibus e estações de metrô, nos intervalos de todas as novelas ou dos programas de maior audiência da TV, nas faixas de todas as torcidas de futebol, em toda organização pública ou privada, nos discursos de todos os políticos deste país: 56% da população do Brasil são negras e este é um país negro.
O caráter óbvio de tal afirmação se desfaz quando constatamos — por meio de dados e evidências — onde e quando o país não é negro e onde e quando ele é. O Brasil não é negro nas empresas e em seus quadros de chefia (de acordo com o Instituo Ethos, apenas 4% de pessoas negras ocupam espaços de liderança). O Brasil não é negro no registro de pessoas jantando nos restaurantes frequentados pela classe média alta e branca brasileira (esse número, por exemplo, não é maioria no Leblon e nos Jardins, regiões de luxo no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente). O Brasil é negro quando nos deparamos com alguns dados educacionais (apenas 60% dos jovens negros concluem o ensino médio no país, conforme o IBGE).
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O Brasil é negro em população carcerária (o Anuário de Segurança Pública mostra que, em 2021, a proporção foi de 67,5% de presos negros para 29,0% de brancos) e é negro na quantidade de pessoas que morrem por tiro (também de acordo com o Anuário de Segurança Pública, em 2021, enquanto houve uma queda da taxa de mortalidade entre vítimas brancas de 30,9%, a taxa de vítimas negras cresceu em 5,8%). O Brasil é negro na doença (até março de 2022, por exemplo, 54% das gestantes e puérperas que morreram pela covid-19 eram negras; o diabetes acomete aproximadamente 50% mais mulheres negras do que brancas e 9% mais homens negros do que brancos. O Brasil é, possivelmente, negro na água e na lama de enchentes e deslizamentos.
Esse conjunto de informações, entre tantas outras, expressa o racismo estrutural que alicerça, sedimenta e define de que forma a sociedade, as instituições e o Estado serão organizados, e, em última instância, quem se escolhe socorrer, proteger, valorizar, e quem se escolhe abandonar, desconsiderar e desprezar.
As informações até aqui não apenas expressam quem somos como país, como também nos confronta com um espelho que mostra como somos do ponto de vista de equidade e de justiça social e racial, pois evidenciam que as políticas públicas, os privilégios, os direitos humanos, o desenvolvimento humano e a própria democracia não atingem uma parte significativa da população que tem uma cor de pele em específico. Nesse sentido, entendemos que qualquer enfrentamento ao racismo — seja pessoal, institucional, político, estrutural — precisa, necessariamente, partir desse espelho: somos um país de maioria de pessoas negras no qual a população negra não detém os mesmos privilégios e direitos da população branca. E aqui cabe ressaltar: estamos falando de uma camada significativa da população apartada de privilégios e direitos presentes, e isso em consequência da forma como a branquitude orienta e estrutura a sociedade à sua imagem e semelhança. Mas o que queremos e precisamos mudar naquilo que vemos no espelho? E, para além disso, o que está nesse espelho para o qual olhamos e não reconhecemos ou enxergamos?
Ou seja, é importante, então, trazer à tona também aquilo que deixamos de enxergar nesse espelho: o reconhecimento da potência da presença e da constituição do país como sendo de maioria negra e o quanto isso gera de invisibilidade de histórias, trajetórias, conhecimentos, meios e formas de viver e lidar com a vida e as relações. Conquistar um presente mais potente e mais vibrante como país passa por esse reconhecimento. Por exemplo, as atuações de organizações, dos movimentos negros e ações por todo o país, o que nos dizem os dados das pessoas negras que entraram nas universidades nos últimos 20 anos, práticas de combate ao racismo nas escolas, o quanto de artistas e intelectuais estão pensando e repensando o país e seu futuro. Esses, entre tantos outros, são dados e informações necessários para enxergarmos o antídoto.
E qual o papel do Instituto Dacor nisso tudo? Olhar para o espelho e enxergar aquilo que para muitos e por inúmeras vezes não é possível. Para tanto, nada mais a ser feito do que materializar o significar do Dacor: trazer os dados à tona, provocar a tomada de decisão, gerar o deslocamento necessário que leva à ação, buscar a positivação desses dados, ou seja, acrescentar e propor. E isso na relação com aqueles que vieram antes de nós e com aqueles que hoje estão e seguem e coadunam com essa luta. Nossa contribuição é reunir e disseminar dados e conhecimentos que nos fazem encarar nosso espelho criticamente e enxergar a potência e as formas de enfrentamento ao racismo. Com base em evidências, propomos uma abordagem sistêmica para apoiar e impulsionar políticas antirracistas.
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