FLÁVIO BUENO — Professor, especialista em geopolítica e relações internacionais, geógrafo, sociólogo e pedagogo (@flaviobueno13)
HECTOR L. C. VIEIRA — Doutor e mestre em direito, sociólogo, advogado e professor universitário, é membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB/DF (@hectorlcvieira)
Não é de hoje que assuntos extra campo invadem os noticiários pelo mundo. Partidas entre equipes de países em confrontos seculares, debate das condições de trabalho dos modernos e nababescos estádios da última Copa do Mundo, preocupação com a inclusão das mulheres igualitariamente nas engrenagens futebolísticas. Há também o constante debate sobre o racismo praticado em todas as dimensões dessa imensa rede de entretenimento chamada futebol. Erro é tratar essas questões como extra campo como se na parte interna dos portões dos estádios, nas linhas de cal marcadas sobre a grama verde, a sociedade se transformasse, desvinculando-se do que é, de fato, enquanto coletivo.
O que estão fazendo com o Vinicius Jr. na Espanha é um atentado à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não há dúvidas que viola a dignidade humana, expõe o atleta a um tratamento degradante e impede o seu direito de ser, incitando o ódio e a discriminação. Apenas para ficar em um exemplo, em véspera de partida recente, torcedores rivais penduraram um boneco do atleta pelo pescoço em um viaduto de Madri. A história negra, que se confunde com a própria história do Ocidente, registra que nas Américas a prática do linchamento foi muito comum como forma popular de penalizar o povo negro pela suposta prática de crimes ou por ter esbarrado em uma pessoa branca.
Alguns chamam de "a era dos linchamentos" e durou até a metade do século 20. Uma das formas dessa penalização é o enforcamento. Essas práticas constituíam-se atos de violência racial, parte de uma tecnologia sistemática de manutenção do terror sobre os corpos negros, com o objetivo de manter o status quo dos grupos sociais. Quando se trata de querer controlar o corpo negro, o futebol acaba ali.
Em programa esportivo, um comentarista asseverou: "Não se trata de racismo, pois o time possui outros jogadores negros que não são alvo dessas manifestações. O problema é mesmo a irreverência e as danças". É aqui que entra a biopolítica. O corpo de Vini Jr. é um corpo político. Além de estar colocado em um lugar incomum para a negritude e ter alcançado valores que o Ocidente coloca como desígnios de sucesso e felicidade como fama e dinheiro, é alvo de constantes censuras para determinar o que ele pode ou não fazer, buscando impor uma forma de ser ao grupo social.
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Ora, a irreverência e a dança são parte do humano, da arte, do esporte: do futebol-arte. O que acontece com Vini Jr. hoje é uma grande oportunidade para reinaugurar fronteiras entre o negociável e o inegociável. Não é mais algo do campo e da bola. Não se restringe à violência dos zagueiros. Vai muito além: é ódio em sua maneira mais vil por meio dos mecanismos mais antigos da biopolítica.
O silêncio também é parte da biopolítica. Quando ele é sepulcral, ou reduzido a pequenas frases de efeitos nos jogos, as principais instituições esportivas indicam negligência e cumplicidade. Medidas paupérrimas, punições inexistentes e a comunidade futebolística ignorando a responsabilidade necessária do debate. A instituição do futebol, dona do esporte oficial, adora "campanha" publicitária contra o racismo, mas na prática é especialista em sportswashing.
Alguns "ídolos", hoje cartolas, deveriam se posicionar. Aliás, à exceção de Kaká, todos os jogadores brasileiros reconhecidos pelo prêmio de melhor da Fifa a partir da década de 1990, são negros e jogaram na Espanha. Sabemos que a ascensão social não necessariamente produz consciência crítica ou senso de pertencimento racial. Porém, esse vácuo tem sido às custas de muita dor, indignidade e violação de direitos. Até quando continuará a consciência crítica e coletiva tão rara quanto água no deserto?
O caso Vini Jr. está longe de ser novidade ou isolado. A conotação e os contornos ameaçam sua existência, é biopolítica, respaldando a velha e conhecida necropolítica. O propósito é límpido: não permitir que um sorriso negro, da zona tórrida tupiniquim, vença como um corpo negro, que baila de forma intrépida sobre empáfia do velho mundo dos colonizadores que parecem ainda não terem superado a mentalidade colonial.
Mal eles sabem: o Vinícius José, de tantos outros Josés, já venceu. Em São Gonçalo, nas favelas e nas comunidades brasileiras, ele sempre será muito mais do que um jogador de futebol. Ele é um super-herói bailarino e sorridente que, por meio de sua arte, de seu corpo e da leveza da referência que já se tornou, transforma o mundo.
Parafraseando Sidney Poitier na obra Ao mestre, com carinho: "É dever de vocês mudar o mundo, se puderem". Tem sido o jogo de Vinicius. Se é consciente, o tempo dirá. Mas transformador, sem dúvidas, é. Ao Vinicius José Paixão de Oliveira Júnior, cidadão do mundo, com carinho. #bailavinijr