WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH - Magistrado de carreira aposentado, professor de direito, escritor, colunista do UOl e CBN, vencedor do prêmio Jabuti de literatura de 2022
O Brasil, juridicamente, está difícil de entender. O certo é ter chegado o momento de o Supremo Tribunal Federal (STF) voltar a decidir técnica e não mais politicamente. Ministros do STF não são eleitos como os políticos. São selecionados para atuação técnica, exigindo-se notável saber jurídico e, em exercício, observância de obrigações elencadas na Lei Orgânica da Magistratura. Ainda mais, devem os nossos ministros voltar ao recato, pois, como ensinou o saudoso jurista Piero Calamandrei, um dos pais da Constituição italiana de 1948, "se o juiz não tem cuidado, a voz do direito se torna evanescente e longínqua, como a voz inatingível dos sonhos". Com efeito, não é constitucional a invenção de um instrumento de autodefesa institucional: inquérito judicial.
Golpismo, fascismo, delinquência populista e ataques ao Estado democrático de direito são prevenidos e reprimidos pelos instrumentos estabelecidos na Constituição e nas leis. Nessas hipóteses, não se pode substituir o Estado de direito pela frase do poeta romano Ovídio "de os fins justificarem os meios". Atenção: ainda que haja na chefia do Poder Executivo federal um compulsivo golpista tipo Jair Bolsonaro. E legal também não é a promoção de contorcionismos judiciais, a fim de estabelecer competência para dizer o direito.
Empossado e iniciado o exercício jurisdicional, o ministro do STF deve vestir toga sem coloração política partidária. Aliás, magistrados estão proibidos de se manifestar ou atuar politicamente. Abandonar a legitimidade, atuar como no faroeste, ignorar o sistema de freios e contrapesos (check and balances) consiste numa deturpação ao nosso sistema constitucional.
No momento, o comum mortal procura, pasmo, entender — sobre o tema competência — as decisões dos ministros Luiz Fux, Edson Fachin e Cármen Lúcia e quando postas em cotejo com as proferidas pelo ministro Alexandre de Morais. O cidadão comum pretende compreender, ainda e quando ministros falavam em terrorismo, por que o filobolsonarista Augusto Aras, agora em panos de novel democrata, propôs ações penais públicas sem cogitar desse grave crime, em face dos atos antidemocráticos e golpistas do 8 de janeiro na capital federal.
Por partes. Nas decisões, os três referidos ministros enviaram para primeiro grau de jurisdição as investigações a envolver o ex-presidente Bolsonaro, isso por perda de foro por prerrogativa de função, mal chamado de foro privilegiado. Até um reprovado em exame de qualificação profissional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sabe haver o legislador, no interesse público, protegido certas funções.
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Em outras palavras, privilegiou-se a função, e não a pessoa do ocupante do cargo, Então e logicamente, encerrada a função — terminado o mandato ou ocorrendo aposentadoria — está findo o foro especial por prerrogativa de função. O espanto decorre do contorcionismo jurídico praticado pelo ministro Alexandre de Moraes. Ele tem mantido a sua competência a respeito dos fatos referentes ao inquérito judicial do STF e aos atos terroristas e golpistas a partir do 8 de janeiro passado.
Relativamente aos atos golpistas, terroristas e ao inquérito judicial, com fake news e ofensas ao STF e ministros, a questão da competência de Alexandre de Moraes vem sendo tratada em "razão da matéria" (ratione materiae). Em sessão plenária, os ministros do STF ratificaram a portaria do ministro Toffoli, então presidente, a inaugurar o mencionado inquérito judicial e designar Moraes para presidi-lo. E Moraes virou, ilegítima e ilegalmente, uma espécie de juiz de instrução. Um inquisidor a determinar a busca de provas, a subtrair as funções atribuídas constitucional e legalmente ao Ministério Público e à Polícia judiciária.
Quanto aos atos golpistas e terroristas, Moraes voltou a invocar o poder de polícia previsto no Regimento Interno do STF. E o procurador Aras ajuizou denúncias criminais junto ao STF. À luz do direito internacional, o episódio representou terrorismo. Como ensina o professor Domenico Tosini, da Universidade de Trento e autor da monografia intitulada "O terrorismo no século 21", "o alvo direto da violência no terrorismo não é o principal".
As invasões às sedes dos Três Poderes da República e os danos materiais verificados não foram os alvos principais da violência. O alvo principal era a derrubada da democracia, o fim do Estado de direito, a aniquilação da nossa Constituição e a volta ao poder do derrotado Bolsonaro.
Quando ocorre isso tudo, o crime é de terrorismo. Agora, pela lei brasileira, a discriminação democrática, com atos violentos e ilegítimos, tipifica o terrorismo. Num pano rápido. O STF precisa voltar aos trilhos e readquirir o prestígio perdido.