economia

Artigo: Um guardião para a moeda

Cristovam Buarque - Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

Quando proclamamos a República, mudamos a bandeira nacional. Desde então, nenhum governo propôs mudá-la para que fosse ajustada às características do partido vencedor nas eleições. Apesar de que o ouro passou a significar genocídio, não se propôs substituir o amarelo; o verde das matas tem virado cinza, mas continua na bandeira; nenhum governo propôs desenhar chaminés de fábricas para indicar desenvolvimento econômico; nem colocar vermelho para simbolizar compromisso social. Mudamos a bandeira, mas mantivemos por mais 50 anos e 14 presidentes a mesma moeda adotada desde 1833 pelo Império. Só em 1942, o governo Vargas substituiu o réis pelo cruzeiro. A partir daí, até 1994, foram 12 presidentes e 10 moedas diferentes, cada uma com média de vida de 5,2 anos, quase uma nova moeda para cada governo. Somos campeões mundiais em tipos de padrão monetário; mais moedas que as cinco taças de Copa.

O Brasil nunca precisou de um guardião da bandeira, mas desvaloriza e cria nova moeda sempre que necessário. Mesmo depois da criação do Banco Central, em 1964, suas decisões seguiam o que o governo desejava para cumprir suas promessas de campanha: realizar obras, financiar privilégios e mordomias, infraestrutura e subsídios para promover a economia, sem atender as necessidades sociais básicas. Financiamos o milagre econômico com inflação, mas nosso povo continuou sem saneamento, transporte público, educação de base.

Civis ou militares, democratas ou autoritários, de esquerda ou de direita, nossos governos sempre trataram a moeda como ferramenta provisória de cada um deles. Ela nunca foi um símbolo respeitado, como a bandeira e o hino. Deveria ser ainda mais respeitada pelo impacto de sua desvalorização. Se o verde da bandeira for ofuscado, nada muda no dia a dia, mas quando a moeda se desvaloriza, todos os acordos econômicos são corrompidos, especialmente o valor do salário; dezenas de milhões têm a pobreza agravada. O descompromisso dos governos com a estabilidade da moeda decorre da sociedade dividida pela apartação, e devido à cultura da parcela rica com voracidade pelo consumo e repulsa à poupança; enquanto a população excluída apenas sobrevive. Os ricos sacrificam a moeda para que os setores público e privado gastem mais do que a renda permite, os pobres não dão importância a uma moeda a qual eles mal têm acesso.

Essa cultura do desprezo ao valor da moeda permitiu o duradouro casamento entre políticos populistas e economistas irresponsáveis, ambos insensíveis ao sofrimento social decorrente da desvalorização de nossas moedas. E faz a inflação permanente e os juros elevados ao longo de quase toda a história republicana.

O real surge querendo mudar essa realidade: cria-se mais uma moeda, a décima em 52 anos. Para protegê-la, adota-se uma Lei de Responsabilidade Fiscal e uma âncora cambial. Em quatro anos, a âncora é arrebentada com a desvalorização de 1999, e a LRF fica sob fogo pela voracidade por gastos e repulsa à poupança. Em poucos anos, foi preciso o artifício de colocar na Constituição um teto de gastos, que resistiu poucos anos. Trinta anos depois do real, com a volta da inflação, adota-se autonomia ao Banco Central, dando-lhe a função de guardião da moeda.

Mas, como ocorreu com a LRF, a Âncora Cambial e com o Teto de Gastos, a autonomia do Banco Central é ameaçada, dois anos depois de aprovada; não resiste às forças atávicas da cultura esbanjadora e da política fiscal predadora. Se o governo pode criar moeda, por emissão ou dívida, não haveria razão para aceitar limites de gastos, financiados por inflação ou juros altos. Opta-se por pagar melhores salários, oferecer mais serviços públicos, manter mordomias e privilégios, investir em infraestrutura e dar subsídios para os setores produtivos ineficientes, e ainda oferecer auxílios mínimos aos pobres. Independentemente disso, valorizar o salário, aumentar a fome, desarticular a economia. Porque, quando a inflação sair do controle, cria-se outra moeda provisória, como se fez a cada 5,2 anos entre 1942 e 1994. Sem sentimento de que a moeda é um símbolo pátrio, tanto quanto a bandeira ou o hino. O Brasil não aspira e os governos não aceitam um guardião da moeda.

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