MARCELO COUTINHO - Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
O mundo passa por uma nova era de disrupções tecnológicas em vários campos, dos robôs às moedas digitais. Em um deles, no setor energético sustentável, o Brasil tem potencial de ser o grande líder, sem exageros ou falsas pretensões. Estou falando do hidrogênio verde, vulgo H2V. Uma maneira eficiente de armazenar a energia mais limpa já conhecida pela humanidade, com zero emissão de gases efeito estufa.
Há uma transição energética em andamento irreversível e acelerada. Por mais que os setores de energia tradicional tentem atrapalhar por medo de perda de mercado e investimentos, e por mais que os fóruns internacionais oficiais vacilem na direção do progresso civilizatório, como ficou demonstrado na última Conferência do Clima das Nações Unidas (COP27), não há dúvida quanto aos avanços obtidos na descarbonização do setor energético.
Para mostrar que não se trata de assunto de gringo de país rico, vejamos o próprio exemplo do Nordeste brasileiro. Hoje, metade da produção elétrica da região vem dos parques eólicos nordestinos. Isso mesmo, algo como 50%, superando inclusive as usinas hidrelétricas, abastecendo casas, ruas e indústrias. Uma verdadeira revolução em duas décadas. Estima-se que a produção possa alcançar o equivalente a 50 Itaipus com os leilões offshore, sobretudo no Maranhão, com ventos acima de 9m/s.
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É tanta energia que o medo sempre foi desperdiçá-la, uma vez que não haveria como armazenar os excedentes. Porém, agora temos uma forma de "estocar o vento", para usar uma expressão da ex-presidente Dilma. O hidrogênio verde faz justamente isso. Suas células de combustível possibilitam guardar a energia proveniente dos ventos e do sol para ser usada mais tarde ou simplesmente para alimentar outras indústrias agora.
O H2V pode ser usado como combustível para carros, caminhões, navios, trens, aviões, colheitadeiras, bicicletas, motos, enfim todo tipo de veículo. Existem modelos operando e até comercializados com motor a H2V. O hidrogênio pode também alimentar geradores e aquecer ambientes. Mais do que isso, seus derivados como a amônia verde e a soda cáustica ajudam outras indústrias a se descarbonizarem também. Com o hidrogênio verde, temos fertilizante limpo, o alumínio verde, o aço verde, o cimento verde e assim por diante.
O hidrogênio é o elemento mais abundante no universo. Não tem risco de acabar ou diminuir. Todas essas máquinas e automotores que usam o H2V não emitem gás carbono. Emitem somente vapor de água, ajudando de maneira abrangente a combater o aquecimento do planeta e a equilibrar o clima. Sim, estamos assistindo nesse momento à primeira revolução industrial amiga do meio ambiente, dentro de parâmetros de mercado, gerando riquezas sem poluir.
Para fazer esse precioso bem, é necessário ter muito vento, ou sol, e muita água. Mas é preciso também muito investimento em eletrolisadores responsáveis por tirar o hidrogênio da água, além de infraestrutura e logística. E é exatamente aí que todo o potencial brasileiro está ameaçado. Muitos fundos de investimento, sobretudo estrangeiros, estão interessados em colocar bilhões nessa nova indústria de vanguarda. Mas o ambiente de negócios anda malparado no Brasil. Falta um empurrão.
Na Alemanha, há um leilão lançado para a compra internacional de H2V, o que deve precipitar a transformação desse produto em commodity global. A Europa começou a fazer suas fábricas, mas esse continente deve ser sobretudo um mercado consumidor. Pelo menos dois grandes gasodutos já estão sendo elaborados para abastecer a região, um terrestre, da Espanha até a Alemanha, e outro subaquático, no Mar do Norte.
Portos estão sendo construídos ou adaptados e navios tanque já começam a ser testados, transportando o hidrogênio em formas líquidas, como a amônia ou o benzil tolueno. A Coreia do Sul já tem traçada sua primeira rota comercial para importar o H2V da Austrália, e o Japão inclusive já demonstrou ser viável o transporte marítimo de longa distância desse produto. Em 2022, seu navio tanque percorreu 9 mil Km desde a Oceania, importando o H2V sem nenhum problema.
Os mitos desencorajadores em torno do H2V foram todos derrubados: "ele não é viável", "não dá para transportar", "não é eficiente", "no máximo servirá como fertilizante", "vai demorar muito tempo ainda", "será sempre caro demais", e assim por diante. O hidrogênio verde é um fato comercial inexorável. Bancos e consultorias internacionais estimam que formará um mercado global de trilhões de dólares até 2050. Só no Brasil, os investimentos privados poderiam chegar a 200 bilhões de dólares nos próximos anos. Um único projeto na costeira Icatu do Maranhão estima mais de 20 bilhões com todo o polo eletroquímico montado.
Enquanto o Brasil cede ao ceticismo alimentado pela indústria suja do petróleo e gás, o H2V vira uma realidade no mundo todo. Os EUA criaram uma lei que favorece a produção do hidrogênio por lá. A China já tem o trem de H2V mais rápido do mundo. Até o Chile está tomando o lugar que deveria ser nosso. Talvez esteja na hora, então, de pensarmos numa Hidrobrás. Não necessariamente uma empresa estatal, mas algo que vá muito além do malparado plano nacional do hidrogênio. Trata-se de uma chance única de reindustrializar o país dentro da nossa vocação energético-ambiental.
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